Olhos que espreitam

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Sabendo que ali provavelmente conheceríamos outros moradores do prédio, fiquei ansiosíssima e minha síndrome de cinderela borralheira ressurgiu latente. Pateticamente levei mais de uma hora experimentando roupas e acessórios para ir ao evento.

Vagner teve uma reunião de última hora, em pleno sábado, e para o meu desgosto surgiu mais tarde no aniversário. Chegamos ao salão, e, para um desavisado tratar-se-ia de uma comemoração de adultos. Embora contasse com vários brinquedos e monitores, diria que não passavam de doze ou quinze crianças. Ao contrário do que imaginava, posteriormente descobri não haver ali nenhum morador do prédio.

Homens sisudos bebendo whisky, conversando em rodinhas, mulheres impecavelmente, e algumas excessivamente maquiadas, com suas bolsas de grife que facilmente custavam mais que um carro popular.

Sentei-me com a Bia em uma mesa próxima ao balcão de bebidas, a menina insistiu que fosse com ela no pula-pula e só depois de uns quinze minutos Iara notou minha presença e veio em minha direção.É certo que não esperava que a mulher desse pulos de alegria ao me ver, mas sua postura era muito contida e artificial, destoava um pouco da Iara que eu pouco conhecia.

-Patrícia, que bom que veio. Como vai? – cumprimentou inclinando-se com um beijinho no rosto. – Oi Bia. – a menina olhou desconfiada e pegou na minha mão retraindo-se.

- Ela está meio tímida ainda. Não é Bibi? – a menina desviou os olhos e permaneceu quieta.

-Ah, mas ela vai se divertir muito. Tem um monte de crianças aqui para ela brincar. – voltou-se para mim com o sorriso gélido.

Ela se afastou aninhando-se numa mesa com cinco mulheres. Percebi pelos olhares velados que comentavam algo de mim, e acho que fui assunto momentâneo das madames. Acompanhei Bia em alguns brinquedos, e quando ela se enturmou com os amiguinhos me vi isolada num canto a observá-la de longe. Finalmente Vagner chegou esbaforido, desculpando-se pelo atraso.

Não mais de alguns minutos depois que ele chegou, Iara veio a nossa mesa acompanhada de um homem.

Estatura mediada, cinquenta e poucos anos, talvez mais. Totalmente calvo, e os poucos fios de cabelo remanescentes eram raspados. Corpulento, de pernas cumpridas e tronco reduzido, parecia uma batata com palitos espetados. Via-se que as roupas eram boas, porém a camisa saía da calça e as mangas mal dobradas no antebraço passavam uma imagem um pouco descuidada. Os olhos eram muito juntos, de um castanho opaco, meio embaçado, sobrancelhas ralas, quase inexistentes, pele bronzeada, com algumas rugas riscadas na testa e ao redor da boca flácida.

Sendo bem benevolente, era um homem pouco atraente. Sendo sincera, era horroroso. Sendo realista, talvez um pouco maldosa: ele só poderia ser muito rico mesmo para se casar como uma mulher como Iara. Ou era detentor de uma personalidade maravilhosa, intrigante, e inteligência fora do comum. Depois de conhecê-lo melhor, a primeira hipótese, por óbvio, se provou ser verdadeira.

- Patrícia, esse é o meu marido, Lúcio Berg. – disse satisfeita com um brilho nos olhos amarelados, ficamos em pé e eu retribuí a introdução, estendendo a mão ao lindo homem.

-Muito prazer, este é o Vagner, meu marido. – É impossível evitar a comparação: o Vagner é um homem atraente. Tendo inclusive somado olhares assim que entrou na festa. A frente de Lúcio parecia um modelo internacional.

Antes de estender a mão para o meu querido, Lúcio arregalou levemente os olhos, emitiu um movimento brusco nos lábios, revelando os dentes branquíssimos, talvez seu único atributo físico favorável, e disse com o vozeirão rouco:

-Ah, acho que já nos vimos algumas vezes. - olhou fixamente para ele e depois de um intervalo que parecia uma eternidade, continuou - Você não é o sócio do Júlio?

EU TOQUEI A VIDA - Continuação de Eu Toquei o InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora