Vida no campo

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Acredito que existe um instante, e sempre nos lembraremos dele, em que um instinto sobrenatural, sem nenhum indício racional e relevante, diz ao subconsciente de forma inequívoca que algo está ou ficará errado. Não se sabe, e, nem há como saber, que esse é o primeiro de sucessivos eventos que levam a lugares sombrios e devastados, culminando com uma alteração de rota da vida que não há caminho de volta. E aquele foi um desses instantes, jamais esquecido:

Por volta das oito da noite, Vagner entrou no quarto com o semblante risonho, algo me dizia que ele despendia um esforço terrível para se mostrar amável, acessível. Retribuí com um "oi amor, que bom que chegou". Pensei prontamente em lhe apresentar a proposta de viajarmos para o sítio da minha tia, mas uma onda elétrica percorreu-me o corpo como se fosse eletrocutada por fios desencapados. Paralisei. Ele não percebeu minha confusão sensorial, se despiu, foi tomar banho e fiquei emudecida na cama com um livro nas mãos.

Senti aquele estranhamento temeroso de dizer algo de que pudesse me arrepender. Depois concluí: "Serão só alguns dias! Qual o problema!?E ele (Vagner) precisa descansar!". Repetia mentalmente essas justificativas, mas quando ele voltou do banheiro simplesmente as palavras fugiram. Demorei uns minutos para me recompor daquela epifania estranha e conseguir reestabelecer o diálogo.

É terrível essa lembrança. Havia algo de místico, transcendental, me apresentando o bem e o mau, como Deus em Deuteronômio entregando a Israel a bênção e a maldição. E por que, oh Deus, escolhi as trevas? 

Enquanto tirava as roupas no closet, fui até ele meio anestesiada. Certa do que haveria de dizer, e, receosa, sem entender por que não me sentia à vontade para fazê-lo.

-Lindo, lembra daquela ideia de viajarmos por um tempo? Então, meu pai deu uma excelente sugestão: poderíamos ficar um tempo no sítio da minha tia Glorinha. O que acha? 

Ele desviou os olhos, saiu do closet ganhando tempo para uma resposta, quando se voltou para mim novamente, o olhar não parecia convergir em minha direção, acho que em nada. Estava aéreo, apático.

-É, pode ser uma boa. – A concordância de pronto me incomodou. Geralmente não era tão condescendente. 

-Sério? Você topa? – alfinetei – Não vai te atrapalhar no escritório?

-O Júlio voltou de férias semana passado, e ele sabe que estou passando uma barra. Não acho que vá se opor. – respondeu como se fosse um convite para ir ao cinema. Nem tocou nas questões de segurança que envolviam a viagem.

Acreditando que ficaríamos apenas alguns dias, ele decidiu levar o pai, que andava muito indisposto e calado. No dia da viagem, acordei de madrugada sentindo palpitações. Estava ansiosa, sobressaltada. Ao mesmo tempo que queria tanto me libertar daquela masmorra, sentia como se não fosse voltar. Troquei de roupa silenciosa, fui até a sala e o Sr. Levy estava sentado no sofá com uma malinha ao lado, segurando a bengala. Olhando-se rapidamente, ele parecia estar num ponto de ônibus esperando sua oportunidade de partir. Que bonitinho!

-Bom dia, Sr. Levy! Já está pronto tão cedo! Animado com a viagem? – perguntei sentando-me ao seu lado.

-Tolice, tolice. – resmungou com os olhos fixos na janela – Sempre acordei cedo! Desde minha infância tenho este hábito.

-Ótimo! No sítio da minha tia todo mundo acorda com as galinhas. O senhor vai se sentir em casa.

- Como se eu tivesse muitas opções, não é mesmo? Preferia estar na minha casa! – Peguei em sua mão morninha e a trouxe para perto da minha barriga.

- Sr. Levy. – disse faceira- Em breve esta casa vai se encher de vida e alegria. Estou entrando no quinto mês agora! Saberemos o sexo na próxima consulta! Vai me ajudar a escolher o nome?

EU TOQUEI A VIDA - Continuação de Eu Toquei o InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora