Sangue

35 0 0
                                    

Enquanto me contorcia de dor no banco, Vagner olhava-me com uma progressão de dúvida. Notoriamente via-se pelo meu rosto esquálido que algo não estava bem. Fiquei com uma sensação incômoda no pé da barriga, mas nada insuportável. Ante meus pleitos insistentes, meu tio seguiu viagem.

Chegamos ao sítio perto das sete da noite. Glorinha havia preparado um jantar de despedida caprichado e apesar dos pratos deliciosos, não consegui comer nada. Minto, comi um pedaço de torta salgado e dali a dez minutos tive que sair da mesa correndo para ir ao banheiro vomitar. Ficamos na varanda o resto da noite conversando e um pouco antes de nos recolhermos, o mal-estar havia cedido completamente e consegui tomar um pouco de canja.

Estava exausta e completamente feliz. Acordaríamos no dia seguinte bem cedo e o helicóptero pousaria às 7:30.

Uma pontinha de tristeza me apertava o peito ao lembrar que deixaríamos o sítio. Partes do meu cérebro pareciam gaseificadas. Lembrava-me do apartamento do Ibirapuera como um lugar longínquo ao qual eu não pertencia.

- Saudades de casa, amor? - perguntou Vagner enquanto me ajudava a colocar as roupas na mala. Dei-lhe um sorriso debochado.

-Sabe que não! Queria ficar aqui até o fim da gravidez... - provoquei.

-Hahaha... - gargalhou corando a pele de índio - Dessa vez não tem jeito. Você tem exames essa semana, seus tios têm a rotina deles e preciso voltar ao escritório.

- Eu sei, amor. Só estou falando... - Aproximei-me, passando-lhe a mão quente na bochecha - Obrigada por tudo...

- Por tudo o quê?

- Por ter concordado em ficar mais uns dias. Por cuidar de nós...

-De nós?

-De mim e da Eva - respondi abraçando-lhe. Ele pareceu surpreso com o meu rompante de ternura, largou as roupas na cama e retribuiu o abraço.

- Você vai ser uma mãe maravilhosa, sabia? Já é a mãe mais linda e amorosa do mundo. Tenho muito orgulho de você.

Vou congelar esse instante. Guardarei o som da voz dele declarando seu amor a futura mãe de sua filha. A esperança inocente na qual estávamos submersos. O mundo de possibilidades incríveis que a maternidade traria. Eu voltaria a São Paulo revigorada, inabalável, sedenta de vida.

Ele me amou ali no sítio pela última vez. Não voltaria a me tocar em muitos meses.

Adormecemos abraçados, ele repousava a mão sobre a minha barriga.

O sono é traiçoeiro, sabe? Durante o sono, saímos do corpo, habitamos outros mundos, consciências alheias, agimos de forma vergonhosa, praticamos atos hediondos. Dormindo, levaram-na de mim da forma mais covarde: enquanto encontrava-me indefesa e inerte.

Acordei com espasmos por todo o corpo, batendo os dentes de tanto frio. Não obstante, sentia o suor pegajoso entre as pernas - achava que seria apenas suor - empapando minha camisola e o estômago encavado, dolorido. Começo a tremer violentamente e o acordo:

-Lindo... - balbuciei e ele abriu os olhos atordoado - Estou morrendo de frio. Pega outra coberta no guarda-roupa.

-Outra? Mas não está tão frio assim.

-Claro que está! Pega lá, por favor! - ordenei encolhendo o corpo.

Ele pegou a coberta, me cobriu e foi ao banheiro. Voltou alguns segundos depois e acendeu a luz.

- Apaga a luz! O que está fazendo? - protestei apertando os olhos contra a claridade e ele ficou imóvel, em pé, próximo ao interruptor, como uma assombração. - O que foi? - Olhei novamente e vi seus pés e parte das canelas ensanguentadas. Ele se aproximou como se fosse tocar numa cobra cascavel, aterrorizado, levantou a coberta e iniciou-se o filme terror: na camisola, nas pernas, em todo o lençol e até no meu cabelo havia sangue. Como se tivessem jogado baldes de sangue embaixo da coberta

EU TOQUEI A VIDA - Continuação de Eu Toquei o InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora