Partenogênese

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Havia parcela minha de culpa no episódio do motel? Corroía-me a ideia de que as alfinetadas da minha mãe e meus rompantes de choro o tivessem instigado a tirar satisfações com o crápula do Lúcio.

Naquele dia não foi trabalhar. Ficou com o celular anexado ao ouvido como se fosse um membro do corpo. Sempre que me aproximava ele se dirigia a outro cômodo e olhava-me irritadiço. No final da tarde, recebemos a visita do seu advogado, Dr. Rossetti, que eu só havia ouvido falar vagamente, nas ocasiões que tinha alguma questão relacionada à custódia da Bia. Tratava-se de um senhorzinho sexagenário, miúdo, de feições delicadas que falava com um português tão formal e arcaico que parecia estar recitando um poema antigo. Ele apresentou rapidamente várias medidas e orientações a cerca da nossa segurança e de imediato entendi que nossas vidas virariam de cabeça para baixo. Depois que o advogado saiu, havia um ambiente modorrento na casa, feito um mausoléu.

- Lindo, entendo perfeitamente que a situação requer cautela. Mas será que não estamos exagerando um pouco?

- São só algumas semanas, amor. Fiz questão que ouvisse do próprio Dr. Rossetti para não me questionar sobre isso. Não preciso ficar repetindo, preciso?

- Vou ter que andar com homens armados ao meu lado o tempo todo me vigiando? Não posso mais visitar os meus pais?

-Sim, linda! Se algo acontecesse com você ou a Bia, jamais me perdoaria. – disse mecanicamente como se rezasse um rosário. - A culpa foi minha. – lamentou-se um pouco vexado - Não devia ter falado com ele, não precisávamos passar por isso. Mas aconteceu e temos que seguir em frente.

- Jura que serão apenas algumas semanas?

- Sim, juro.

Ora, ora. Já sabem o que aconteceu, não sabem? Claro que sabem: as semanas viraram meses de pesadelo. Conforme minhas previsões, passei a viver como um monge recluso.

O carro, que já era blindado, foi trocado por um modelo mais parrudo, e um segurança armado passou a ser também meu motorista particular. Isso fosse pouco, um segundo veículo nos escoltava de forma velada com outros dois seguranças.

Supermercado? De jeito nenhum! A Eugênia passou a fazer as compras da casa, também acompanhada de um segurança. Logo começaram a fofocar pela vizinhança que na nossa casa até os empregados andavam de motorista particular. Cabeleireiro? Nem pensar! Não poderia ficar mais que uma hora num estabelecimento, sendo assim recebia os serviços a domicílio. Viagens a Campinas? Só em caso de vida ou morte. Minha mãe vinha uma vez por mês com o Kaio e era sempre desgastante, pois ela chegava já reclamando que sua filha vivia numa masmorra e infernizava o Vagner com suas lamúrias. Visitas à escolinha? Duas ou três vezes por semana no máximo e em horários diversos, sem nunca informar com antecedência a ninguém.

Nesse período vivi num regime de prisão domiciliar, só me faltou a tornozeilera! Coisas banais como tomar um café na padaria, ou, dar uma volta no parque, viravam eventos cinematográficos planejados com horas de antecedência e sempre com o consentimento do Vagner. Era sufocante! Frustrante!

Vagner, que também contava com um segurança particular, reduziu consideravelmente suas viagens a trabalho e em casos mais urgentes usava um helicóptero alugado para se locomover em distâncias maiores.

Andava desgostosa e na tentativa de vencer o tédio passei a cultivar um novo hobby: jardinagem. Repaginei toda a parte de lazer da cobertura e fiz um curso de paisagismo pela internet. Apesar dos meus esforços em exercer alguma tarefa produtiva na as horas de ócio, encontrava-me cada vez mais melancólica e irritadiça, sentindo enorme saudades do Kaio.

Uma manhã acordei nauseada e com a pressão baixa. Tentei tomar o café da manhã e Eugênia se apercebeu do meu semblante adoentado.

- Dona Patrícia, a senhora está pálida feito cal! Vai colocar um pouco de sal debaixo da língua. – asseverou enquanto me trazia um copo d'água.

EU TOQUEI A VIDA - Continuação de Eu Toquei o InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora