A charada de Eva

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Passamos o dia batendo perna. Visitamos a cocheira dos cavalos, ajudei minha tia a colher amoras no pomar e fervermos as frutas com açúcar. Cerca de três quilos de geléia caseira foram envasados e decorados com tecido de chita para serem vendidos na cidades na semana seguinte.

Apesar da enorme quantidade de comida que sobrou do almoço, Glorinha se pôs a cozinhar caldo verde com torradas para o jantar. "Visita aqui em casa tem que passar bem, ainda mais se for família". Na maior parte da refeição o Sr. Levy foi o centro das atenções, contando em detalhes sua história de amor e o casamento de cinquenta e cinco anos com sua finada Olga. Meu tio, que fala mais que a boca, não conteve suas baboseiras.

-Mas o senhor tá tão bem de saúde, seu Levy! Nunca pensou em arrumar outra mulher? – Ai Cristo, já senti uns calafrios antevendo as abobrinhas pela frente.

-Jamais! – protestou meu sogro com austeridade - Ninguém vai substituir minha Olga. Ela continuará sendo minha esposa, viva ou morta, eu a honrarei até o fim dos meus dias! – Oh gente! Que homem apaixonante era o meu sogro. Minha tia tentou disfarçar, e, olhando com atenção viam-se os olhos marejados. Ficamos as duas suspirando e creio que ela estava caidinha pelo velho.

- E como ficam as outras coisas, Sr. Levy?? – retrucou Osvaldo – Homem com saúde não passa sem mulher, não. Uai, é da natureza nossa!

-Osvaldo! – repreendeu minha tia constrangida – Deixe de falar bobagens! Quem dera todos fossem como o Sr. Levy! – elogiou virando-se para o meu sogro. Meu tio poderia ter ficado quieto, não? Sim, poderia. Não satisfeito, além das abobrinhas, acrescentou a misoginia.

-O senhor me perdoa, viu. Na verdade, sabe, admiro muito isso aí, é um gesto bonito, coisa de um coração nobre. – iniciou tentando se reposicionar – Mas é... – pausa, ficou procurando palavras sensatas e só achou as asneiras – Isso aí de ficar pensando na mulher morta – minha tia quase engasgou, Vagner arregalou os olhos e parou de tomar o caldo – Não dá certo para todo mundo, não. Acho que é mais para homem da cidade grande. Por aqui nós precisamos de mulher. – Vendo que todos lhe olhavam abismados, tentou incrementar seus argumentos geniais - Uai, gente, ninguém aqui é criança, é? O homem carece mais dessas coisas mesmo. Mulher quando envelhece perde a vontade, o homem não! Tô falando alguma besteira? – ninguém respondeu o que para um ser um tantinho mais sensato significaria um sonoro "SIM!", ele estaria falando muitas besteiras. Contudo não esmoreceu – Agora, tá bom, se o cabra não precisa da mulher na cama, tem as outras coisas, uai. Eu mesmo: não sei fritá um ovo, lavá uma louça, uma roupa, e aí como que fica sem mulher em casa?

- Por Deus, Osvaldo! – ralhou minha tia um solavanco – Pare de falar besteiras! – não me contive e fui para a batalha.

- Que isso, tio! Você fala como se a mulher fosse um animal de carga! Como uma vaca, uma mula, ou qualquer coisa só para trabalhar e satisfazer o homem quando ele quer! Que absurdo, como pode pensar uma coisa dessas?! É inacreditável! – ele coçou a cabeça confuso, como um ator despreparado para uma cena de improviso. Sr. Levy levantou a manzorra pedindo a palavra, de um jeito intimidador feito um regente de orquestra.

- A mulher é o pescoço de um homem, Sr. Osvaldo! – ficamos em silêncio e Vagner deu suspiro enfadonho, como se já houvesse presenciado aquele discurso várias vezes – Ainda que sejamos o cabeça da casa, a mulher é que sustenta o homem, dá o direcionamento de tudo, ela encontra as coordenadas quando estamos perdidos, mantem a razão e a sabedoria de um lar harmonioso e frutífero! Jamais deve ser subjugada! – Osvaldo concordava com a cabeça balbuciando mecanicamente "é verdade, é verdade" – Ai de mim, ai de mim, se um dia tratei minha Olga como uma escrava para serviços domésticos! Ela foi a luz da minha vida e por cada instante que passamos juntos, sou grato ao Altíssimo pois não poderia ter me dado uma companheira melhor!

EU TOQUEI A VIDA - Continuação de Eu Toquei o InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora