O segredo, o pecado de Estela

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 Lutei com os pensamentos embaralhados o resto da noite, sentindo um gosto insalubre que não saía da boca mesmo depois de uma escovação demorada.

Pela única janela do quarto vi o dia surgindo. Ao me levantar, andava sem firmeza, como se o chão cedesse a cada passo. Lavei o rosto e tentava me convencer: "Foi só um sonho ruim, uma bobagem, todo mundo tem pesadelos de vez em quando." Olhando no espelho, Estela de vinte e três anos surgiu no reflexo denunciando nosso pecado, como uma cicatriz mal fechada, purulenta e fétida. Tudo voltou: os acontecimentos se reproduziam como um filme repassado várias vezes. Sentei-me no vaso sanitário entorpecida, trêmula. Estela, Estela... Você matou nosso bebê.

Foi no segundo ano como garota de programa, pouco antes de me mudar para São Paulo.
Quarenta e nove anos, casado, dois filhos e uma netinha. Homem cumprido, com jeito de pelicano,  olhos caramelados atentos,  era muito sedutor e perspicaz e quando mudo parecia outro homem, como se cambiasse de personalidade falando. Possuía outra essência escondida, tal como eu levava Patrícia ao longo do dia e me revela através de Estela nas noites que vendia o sexo estéril.

A primeira vez que esteve comigo, falava muito, desabafando do casamento falido, referia-se a esposa como uma amiga que repartia a cama e obrigações diárias. Dizia trabalhar como contador de uma pequena fábrica de artigos de decoração em Pedreira e denotava uma frustração por nunca ter tido o mesmo sucesso profissional dos irmãos, médicos bem-sucedidos da capital. Achei que nem me possuiria. O tempo do programa se esgotava e ele continuava tagarelando.  

Voltava todas as quartas, enquanto a esposa estava na pós-graduação. Sempre eloquente, se interessava por mim, e ao contrário de outros clientes, não parecia ofendido de conversar com uma garota de programa que não fosse só um corpo gemendo. Depois de alguns meses, se dizia apaixonado. Possuía-me com um desejo lancinante  e cuidadoso, fazia questão de me ver gozando. Nos seus braços me sentia menos solitária e não precisava ser Estela o tempo todo.

Ele declarava seu amor fervoroso e prometia que deixaria a família para ficar comigo. "Só preciso ajeitar a parte financeira. Não sou feliz com ela. Você é a paixão da minha vida". Ele me chamava de paixão. Revelei o meu nome e ele sabia da Patrícia: uma ex pianista cujo pai ficou cadeirante e terminou se vendendo nas noites da Casa Rosada. Repetia incessantemente que na hora certa eu saberia tudo dele. Que patético, acreditava cegamente mas nunca saberia o seu nome. Márcio. Nunca houve nenhum Márcio. 

Patrícia, Patrícia, como pôde ser tão ingênua?

Naquela época estava confusa e despertencida de mim mesma. Sentia-me suja e insone, uma alma vagando aqui e acolá. Minha família ainda não sabia de Estela e vivia a dupla jornada exaustiva emocionalmente de mentir o tempo todo, andando com aquele segredo impronunciável. Ele foi também o primeiro homem que amei, ou achava que amava. Nos últimos meses não me pagava, trazia presentes caros e tratava-me como uma namorada. Viajamos juntos para um hotel de Atibaia e fiquei arrebatada de paixão. Fizemos amor várias vezes sem proteção e concebi. Eu o amava demais naquela altura, faria qualquer coisa que pedisse.

Era inverno. Minha menstruação atrasou e achei que seria algo relacionado ao ovário policístico, comum nas mulheres da família. Uma tarde estava no ponto de ônibus e desmaiei. Fui levada ao hospital por um taxista caridoso e tive a notícia. Recebi a gravidez como uma dádiva, um glorioso acontecimento. Estava tudo planejado: ele finalmente deixaria a mulher e ficaríamos junto, na sequência meus pais seriam os avós mais orgulhosos do mundo e jamais teria que me vender novamente. Formaria minha família e voltaria a tocar piano.

Que terrível, não quero lembrar. Não quero lembrar. Saí do hospital tão feliz, oh Deus! Estava sublimada de alegria. Passei em frente a uma loja infantil e comprei uma mantinha branca de bebê. Cheguei em casa com a sacola e disse a minha mãe que seria um presente para uma amiga que estava grávida. "Que amiga é essa, Patrícia?", "Estela, mãe. Você ainda não conhece, é lá do shopping." Dormi abraçada com a mantinha impregnada de sonhos.

Houve esse dia terrível que vez ou outra tenho que relembrar como uma maldição. Ele emudeceu adquirindo a outra personalidade. O rosto inexpressivo inicialmente não revelava nada, quando me aproximei recebi o tapa. "Sua biscate vagabunda! Você me enganou! Vaca! Some da minha frente!". Doía. Doía como se tivesse levado uma paulada no rosto. Ainda dói e sempre vai ser assim, aquele rancor inesperado flagelando meu coração da forma mais cruel. Ele saiu transfigurado. Era o próprio ódio personificado no corpo magro e bestializado. Foi a última vez que o vi.

Estive em todas as fábricas de Pedreira, perambulando enjoada num frio cortante, mendigando por qualquer informação sobre o "Márcio", contador alto e cinquentão. O homem nunca existiu. Nem sabia mais o que era realidade, e quantas mentiras engoli. Éramos tão íntimos e isso me aniquilava. Oh Patrícia... Como pode ser tão burra? Ele não era nada do que dizia, jamais deixaria a esposa e acima de tudo: nunca te amou. Usou como todos usaram, te enganou e revirou seu coração como um porco chafurdando-se na lama, no sexo gratuito que recebia.

Disse ao dono da casa de prostituição que não poderia mais trabalhar. Caí num choro compulsivo segurando a barriga e ele entendeu tudo. "Se preocupa não, menina. Tenho um camarada que resolve essa parada aí. Você não é a primeira".

No consultório refinado do Taquaral, aguardei o médico chamar por Estela. Seria um valor alto, que eu não tinha. O homem baixote de cabelos emplastados de pomada, abriu um sorriso lascivo e disse que podia faria uma exceção. "Você é bonitinha... Deita lá."

 Achei que me examinaria. Olhando para o teto, deitada, ouvi ele abrindo o zíper da calça. Levantou meu vestido, tirou minha calcinha e me penetrou por longos oito minutos. Eu sei porque vi o relógio digital na mesa dele com a luz vermelha como olhos de um demônio. Gozou inundando minhas entranhas com o sêmen pegajoso, tirou o pênis como quem tira uma fruta da geladeira.

Sentou-se ainda ofegante, ordenou com a voz impaciente que me lavasse no banheiro e voltasse logo pois tinha outros atendimentos. Tive que sair da sala, a recepcionista me olhou com um desdém patético "Vai precisar de uma toalha?". Estava tão atordoada que não respondi.

Retornei e recebi dois comprimidos brancos embrulhados num papel pardo. Disse que tomasse num dia que pudesse ficar deitada. "Se passar mal me ligue, mas isso deve resolver, você ainda está no início". Estática, mal respirava, aguardei sentindo as gotas de suor surgindo no rosto. Ele se irritou. "Que é? Não entendeu alguma coisa? Pode ir embora e feche a porta quando sair."

Fui cambaleando, com a visão turva e esqueci a porta a aberta. Antes de chegar ao elevador pude ouvir "A porta caralho! Filha da puta, não serve nem para fechar uma porta."

Estela, você matou meu bebê.

Depois que ingeri o segundo comprimido, houve um sangramento mais forte. Expeli um coágulo do tamanho de uma ameixa e fiquei observando-o boiar na água do vaso sanitário. O som da descarga levando o feto. O cheiro de sangue. A náusea. A dor que acalentei em secreto. A voz ressonante, ecoando dezenas vezes o pecado impublicável da mulher venal. A sentença imediata: isso não será perdoado.

Essas poças de memórias acusatórias são um câncer que um dia se espalhariam pelo meu corpo. Deus se lembraria da oblação da juventude e me cobraria o preço justo? Sacrifiquei meu filho a ídolos pagãos, o fruto da prostituição imunda, uma alma inocente. Expeli a criança das minhas entranhas e como um dejeto a descartei no esgoto.

Você não tem vontade de sair da cama e tropeçar no sofrimento que a memória, um carrasco habilidoso, fustiga e açoita. 

Não há um lugar no mundo para se abrigar da culpa. Estou trancada para fora de mim mesma. Fui reduzida a um repositório dessas lembranças. Sou a assassina de meu próprio filho.

Patrícia, você matou o seu bebê. Sim, eu matei o meu filho.

EU TOQUEI A VIDA - Continuação de Eu Toquei o InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora