Capítulo 3: Coisas feitas pela última vez

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por muito tempo nós esperamos e salivamos

vocês preenchem a escuridão com fogo

pois temem a noite

.

mas agora o seu fogo morreu

e nós cansamos de aguardar

Fazia tempo que a padaria do seu Cipião não via tanto movimento. É uma pena que metade da Avenida Paulista precisou ser engolida pela terra pra que isso acontecesse. Pena também que seria a última vez que encheria.

A prefeitura montou um posto avançado bem na frente do estabelecimento, que estava agora recheado de policiais, voluntários, funcionários da defesa civil, bombeiros e daquelas criaturas que circulam o desastre como as mariposas em volta das lâmpadas quando chega o frio: os fotojornalistas. Uma subespécie que consegue se destacar pelo cinismo até mesmo entre os próprios jornalistas.

Os fotógrafos formam uma espécie de irmandade informal dentro do jornalismo. Enquanto os colegas do texto ficam enclausurados nas redações e escravizados pelo relógio, os fotógrafos estão lá nas trincheiras, sentindo o cheiro de lama nos desabamentos da periferia ou ouvindo o comentário sarcástico do governador quando os microfones estão desligados nas coletivas. E como eles se encontram seguidamente cobrindo os mesmos eventos, se forma uma sensação de camaradagem não diferente da de veteranos de unidades militares.

E eles estavam aos montes do lado do abismo da Paulista, mas buraco é buraco e chega uma hora que você não tem mais ângulo diferente pra inventar de fotografar o negócio. A fenda estava onde antes se localizava a Alameda Ministro Rocha Azevedo e tinha cerca de dois quarteirões de extensão, um em cada lado da Paulista.

As autoridades evacuaram as construções num raio de vinte metros da fenda, e isolaram as redondezas criando uma zona de segurança, mas os engenheiros da prefeitura estavam perdidos para estimar uma distância segura. Até onde sabiam, pra ser seguro mesmo, a cidade inteira devia ser evacuada.

Pois lá exilado na calçada devido às leis antifumo da prefeitura estava o Caio. Apreciando seu cigarro e o pôr-do-sol paulistano, que quase sempre ocorre no topo dos edifícios pela falta de um horizonte.

- Caio. Cara, você não imagina o trabalho que foi chegar aqui – disse João, ofegante e com grandes manchas de suor debaixo das axilas.

- Você veio a pé? – perguntou sorrindo o fotógrafo.

- Claro, tá tudo parado. Eu não lembrava que essa ladeira da Consolação era tão feroz. Me dá um cigarro que eu estou precisando.

- Você tem certeza? Você parece que não consegue nem respirar direito quanto mais fumar.

- Por isso que eu preciso de um cigarro pra me acalmar. Você virou a minha mãe agora, poxa?

- Tá bão. E é bom se acostumar com as caminhadas – falou Caio estendendo o maço – porque pelo visto as ruas vão demorar a voltar ao normal.

- Nem me fale. Cara, uma coisa é ler sobre a destruição, outra e ver os lugares que você conhece desde moleque desse jeito. Deus, olha só o tal do rombo!

- Faz a gente se sentir pequeno, não é? – perguntou Caio durante uma baforada contemplativa.

- Faz a gente sentir medo, isso sim – respondeu João – Você não lembra que eu estou morando a quatro quarteirões daqui?

- É mesmo. Olha pelo lado positivo, acho que agora o aluguel do seu apartamento vai cair.

- O meu medo é *eu* cair. Terra adentro! – João falou se debruçando a dois metros da rachadura tentando ver seu fundo – Se aconteceu aqui, quem me garante que não acontece por lá?

Quando os Pesadelos AcordaremOnde histórias criam vida. Descubra agora