Capítulo 7: Eu não o perdoo

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bendita seja Bahja

mãe que nasceu da morte

O momento mais marcante na vida de João foi quando ele desistiu.

Nunca vai se esquecer do dia. Estavam no parque da Aclimação, ele, a Fernanda e o Daniel, com dois anos na época. Depois de passearem por quase uma hora, pararam para tomar um sorvete. Era uma daquelas manhãs frias, mas sem nenhuma nuvem no céu, ideais para lagartear ao sol. João se sentou com Fernanda no banco enquanto Daniel atazanava a vida dos patos na beira do lago. Eles conversaram sobre opções de decoração para o apartamento que compraram, ou que estariam gradualmente comprando em parcelas financiadas pelos próximos cinco anos. João brincando fazia lobby para arranjarem uma mesa de sinuca para a sala, ou talvez um daqueles globos de discoteca, e espelho no teto do quarto tinha que ter. Fernanda tentava explicar que queria morar num lugar que transmitisse uma sensação de estilo e não de motel da Raposo Tavares. "E como a senhora está tão entendida nos motéis da raposo?", ele perguntava. "Você sabe muito bem porque", ela respondia. E riam juntos.

De repente Daniel capotou com tudo, derrubando o sorvete na grama e afundando o rosto nele em seguida. Ele voltou o olhar aos pais com a testa cheia de baunilha e vestindo aquela expressão de choro-ou-não-choro. Aquela tão temida carinha frente à qual os pais precisam emular perfeita naturalidade para evitar um berreiro.

A atuação do casal não deve ter sido muito convincente, pois o berreiro veio e veio forte. Fernanda se levantou e foi ao encontro de Daniel que a aguardava com os braços eriçados como um diminuto boneco inflável de posto de gasolina. Velha de guerra, ela o pegou e o jogou com tudo para cima fazendo caras engraçadas. Não se passaram nem dez segundos e o choro já tinha se transmutado em uma risada devido à sua alquimia materna.

João sorriu vendo os dois e sentiu uma felicidade que não provava desde a infância. Mas logo João sentiu outra coisa. Uma sensação que não tinha nome. Como é possível sentir algo sem nome?

Amor, raiva, inveja, tesão, tristeza, gratidão, culpa, asco, curiosidade, frustração, medo, alegria, interesse, inveja, remorso, ciúme, orgulho; tudo o que João lembrava ter sentido tinha um nome. Aquilo não. Olhando os dois brincando, que a essas alturas se enfrentavam em uma batalha de cócegas sobre a grama, João sentiu como se algo tivesse quebrado. Ele foi tomado por uma sensação de distanciamento, como se os enxergasse através de um vidro. Como se ao tocá-los, suas peles estariam cobertas por um plástico. João sabia quem eles eram, lembrava dos seus rostos e de suas histórias tão bem quanto antes, mas não mais os *reconhecia* como esposa e filho. Foi como se a felicidade de João se espatifasse no chão feito um vaso de porcelana. E ele tentou juntar mais uma vez as peças em sua mente, mas o vaso agora tinha diversas rachaduras. Diversas cicatrizes. E ele sabia que era pra sempre.

Ele desistiu ali dos dois e nunca soube o porquê. Tentou explicar para outras pessoas, em particular na terapia depois do divórcio, mas aquela sensação que ele provou naquele dia parecia escorregar entre as palavras da descrição. Era como tentar capturar a complexidade de uma sinfonia em três palavras. Não, era pior. Não havia nenhuma palavra para aquilo. Sequer traduções grosseiras. E o psiquiatra apenas balançava a cabeça com sua expressão neutra de psiquiatra. João se sentia sozinho, pequeno, e se perguntava se a loucura era assim.

Ele não disse nada à Fernanda na hora, nem quando voltou pra casa. É curioso como ela demorou alguns meses para perceber, mas Daniel soube assim que olhou para o pai enquanto brincava na grama naquele dia. E João virou o olhar, envergonhado.

* * *

- Vocês tão vendo ele?! Alguém viu pra onde eles levaram o João?!

A voz tremida de Paula ecoava entre corredores iluminados vez ou outra pelos raios da chuva torrencial que caía em São Paulo, como se a cidade quisesse se lavar de todo o sofrimento dos últimos dias. O edifício tinha dois flats de alto padrão por andar. Agora na escuridão, com uma ou outra mancha de sangue decorando as paredes, pareciam catacumbas de dez mil reais o metro quadrado.

Quando os Pesadelos AcordaremOnde histórias criam vida. Descubra agora