Michael, que ainda estava andando, percebeu que Millie havia parado de andar.
— O que foi agora? — ele perguntou, impacientemente.
Millie não respondeu. Continuou observando a imensidão daquele lugar. O silêncio era preenchido pelo som do vento forte e das ondas inquietas do mar. A ponte era enorme. "Não consigo."
— Michael — ela enfim falou algo — Eu acho que não quero continuar.
Ele lançou uma cara de incredulidade, como quem não estivesse entendendo aquela mudança repentina de ideia.
— Eu quero voltar pra casa, Michael.
Seu olhar sofrido intensificava o que ela havia acabado de dizer.
— Não podemos fazer isso, lembra? Por causa da sua ideia estúpida, não podemos voltar atrás.
Millie infelizmente lembrou-se daquele fato.
Segurou as lágrimas. Por que diabos ela havia decidido embarcar naquela droga de viagem? Por que decidiu deixar tudo para trás, sua casa, sua cidade, seu conforto, para tentar procurar humanos que provavelmente nem vivos estavam? Por que ela ainda tentava se já sabia que no final iria fracassar?
— Eu não quero mais fazer isso, Michael — escondeu o rosto nos ombros do amigo — Me deixa aqui, segue seu caminho. Eu estou sendo uma dor de cabeça pra você.
Michael paralisou por um momento. Millie desistindo assim fácil das coisas? O que aconteceu com ela? Ela não era assim. Seria aquilo culpa dele?
— Eu não acredito que você vai desistir agora — ele disse duramente, enfatizando a última palavra — Millie, a gente já atravessou duas tirolesas, fugiu de uma avalanche de neve, sobreviveu a um bando de espantalhos vivos e escapou de uma floresta pegando fogo.
Ela, que estava enfiada no ombro do amigo, levantou a cabeça para olhar seus olhos.
— Não é todo dia que se encontra uma mensagem de dois humanos que estão te procurando. É uma chance que você não pode perder. E daí se eles estão vivos ou não? E daí se for uma armadilha ou não? Você só vai saber se chegar lá, não é? Agora não é hora de desistir. Você devia ter desistido enquanto ainda estávamos em casa. Agora que você está aqui, você precisa continuar.
— Eu não consigo, eu não...
— Você consegue sim. — a interrompeu, com uma convicção imensa nos três olhos.
Uma chama de esperança e determinação se acendeu no coração abatido de Millie. Ela já havia enfrentado tantas coisas, tantos problemas até agora. O "algo mais" que ela sempre quis fazer para a humanidade estava bem na sua frente. E ela já estava desistindo? Por que desistir agora?
O que havia dado nela? Por que havia ficado tão desmotivada assim de repente? Até Michael estava mais motivado que ela — e olha que ele ainda estava furioso com ela.
Millie não podia desistir. Aquele era seu destino, seu propósito. Ela precisava fazer aquilo. Independentemente de tudo querer fazê-la voltar atrás. Sua família e todas as pessoas que morreram dependiam dela. Millie precisava ser mais forte que si mesma. E nada e ninguém iriam lhe impedir. Nem mesmo Michael, nem mesmo algum outro zumbi e nem mesmo ela mesma.
"Eu vou te deixar orgulhosa, vovó" sorriu para o céu "Vou deixar todos vocês orgulhosos".
— Eu consigo — decretou, determinada — Eu consigo! Eu con...
Um trovão cortou sua voz, o que a fez ficar assustada e dar um gritinho. Sentiu um pingo gelado cair sobre sua testa. Depois outro. E mais outro. E milhares de outros. Estava chovendo.
— Ai não! Precisamos encontrar algum lugar pra ficar! — ela disse.
Tentou correr em direção à estrada, mas se esqueceu de seu tornozelo torcido. Gemeu de dor quando o pé manco atingiu o chão. Michael rapidamente a segurou antes que ela caísse.
— Ali! Aquele carro! — ela disse, apontando para o veículo, que estava em perfeitas condições em comparação aos outros, estacionado um pouco distante dali.
O morto-vivo colocou Millie nas costas e correu até lá. A chuva foi se intensificando com rapidez. O vento foi ficando mais forte e os pingos, mais grossos. A ventania fazia o cabelo de Millie balançar como uma bandeira. Além disso, a direção da corrente de ar estava contra eles, coisa que dificultava um pouco a correria de Michael.
Enfim chegaram ao carro. Um raio seguido por trovão os assustou. Michael abriu a porta de trás do veículo — o carro, por sorte, estava destravado —, tirou Millie das costas e a colocou com delicadeza no assento. Depois, ele correu e se sentou no banco da frente. Quando fechou a porta, o som da forte ventania e da chuva ficou do lado de fora, causando um silêncio imediato dentro do carro.
Millie observou a chuva pela janela. Os pingos caíam sobre o vidro e era possível ver várias folhas de árvores voando agitadamente com o vento. Olhou para o banco da frente e percebeu que Michael segurava com força o volante do carro.
— Se quiser, pode ir embora e seguir seu caminho quando a chuva acabar — ela disse — Você já fez muito por mim, Michael.
O morto-vivo ficou em silêncio por um tempo.
— Eu nem tenho lugar pra onde ir mesmo... — enfim respondeu.
Millie ficou surpresa.
— Espera, significa que você...
Ele assentiu com a cabeça antes mesmo da humana terminar a frase. Millie deu um grito de felicidade e começou a dançar, fazendo o carro se chacoalhar todo.
— Mas é só porque eu não sei pra onde ir! Se eu soubesse, eu já teria ido embora! — ele avisou.
A humana riu da teimosia dele:
— Já entendi, cabeça dura. Você diz que eu não consigo viver sem você, mas é você quem não consegue viver sem mim!
Michael se esticou para o banco de trás e cutucou a barriga da parceira, fazendo com que ela sentisse cócegas. Ela riu e retribuiu a cutucada. E os dois ficaram por um tempão rindo e se cutucando, feito duas crianças bobas.
Enfim, tudo está bem quando acaba bem.
...mas não há mal que nunca acabe nem bem que sempre dure.
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Após o Apocalipse
AventuraUm zumbi curiosamente diferente dos demais que precisa controlar seu lado mais incontrolável para não matar sua única amiga. Uma humana que remói uma vida rodeada por mentiras, memórias e a responsabilidade de orgulhar a família e todos que morreram...