"Não, não pode ser verdade. Os humanos foram extintos no Apocalipse. Eu devo estar enxergando errado" pensou.
A mulher, de repente, virou o olhar na direção de onde estava Michael. Ele rapidamente se escondeu atrás do muro. Ela voltou-se, então, para a enfermaria. Tirou uma coleção de cartões do bolso — eram tantos que ela até deixou alguns caírem sem querer — e saiu passando um a um na fechadura até a porta abrir. Ela entrou na enfermaria e acabou deixando a porta aberta.
Michael esperou um tempo. Depois saiu de trás do muro. Aí andou de cócoras de volta para a enfermaria. Se escondeu atrás de uma meia-parede e observou a mulher em uma distância segura. Michael não conseguia ver seu rosto: um enorme cabelo ondulado preto o escondia. Assim ficava difícil descobrir se ela realmente era uma humana ou não.
A mulher estava mexendo numa estante cheia de medicamentos. Aquilo provocou Michael de certa forma. Ele não podia deixar que ela pegasse tudo. Precisava acabar com ela antes que ela acabasse com a estante.
Empunhou o pé-de-cabra e contou até três para sair dali e avançar nela. Mas ele percebeu que a mulher estava com uma pistola na mão. Voltou a se esconder na meia-parede. Ela estava em uma vantagem injusta. Só um aperto no gatilho e Michael estaria morto. Precisava pensar numa estratégia melhor.
De repente, a mulher se virou, deixando seu rosto visível. Olhos pretos, bochechas rosadas, uma cara de preocupação... Não podia ser. Era uma humana mesmo.
Michael esfregou as pálpebras e observou a humana mais uma vez — até o terceiro olho fez cara de confusão — e, depois, se escondeu na meia-parede. Ela era mesmo uma humana? Como ela conseguiu sobreviver? Como havia chegado ali? Como estava sem arranhões? Era uma humana mesmo?
Michael novamente se virou para ver a mulher, mas nisso, acabou batendo o rosto na parede. A humana voltou-se de costas, apontando a arma para o lugar de onde havia escutado o barulho.
O morto-vivo correu acocorado para a próxima meia-parede ao seu lado, despistando a mulher. Ela ficou observando por um tempo o local onde Michael anteriormente estava e enfim voltou-se para a estante.
Michael levantou lentamente a cabeça, agora observando a humana pelo vidro. Ela estava tomando o estoque inteiro de medicamentos da enfermaria. Ah, não. Não podia deixá-la fazer aquilo. Aquela era a única enfermaria boa que Michael havia encontrado. Ele precisava dar algum jeito de matar a humana e roubar os medicamentos que ela já havia pegado.
Mas como iria roubar os produtos dela se Michael não podia confrontá-la cara a cara sem tomar um tiro no cérebro? Ele precisaria enganá-la de alguma forma. Uma emboscada? Uma armadilha? Não, aquela humana não devia ser tão burra como os outros zumbis que ele já havia matado. Humanos só se fazem de burros com outros humanos por perto.
Espera. Se humanos se tornam mais burros quando estão com outros humanos, significa que, se Michael fosse um humano, a humana iria ficar burra perto dele?
Até que era uma boa ideia. Principalmente pelo fato de ele não se parecer tanto com um zumbi. Tirando o terceiro olho da testa, a sanguessuga da bochecha, a minhoca do olho esquerdo e as costuras e ferimentos presentes nos braços, ele era um verdadeiro "pseudo-humano". Definitivamente, seu gosto por estética lhe trouxe bons resultados. "Quem é a mulherzinha agora?"
Michael, então, teve uma ideia. Tirou a mochila das costas e pegou um rolo de esparadrapo. Delicadamente, buscando não fazer barulho, tirou alguns pedaços da fita e os colocou sobre as regiões zumbificadas do seu corpo.
Tirou da mochila também um casaco — que nunca imaginou que precisaria usar um dia, afinal ele não tinha mais a capacidade de sentir frio — e o vestiu com o objetivo de cobrir as feridas do braço.
Por fim, soltou um pouquinho do cabelo em cima da testa, para tentar esconder o terceiro olho. O pobre coitado ficou piscando, se sentindo incomodado com aquilo, mas depois ele fechou as pálpebras e ficou quietinho.
Ok. Hora de agir. Propositalmente, bateu o punho na meia-parede para gerar algum barulho que chamasse a atenção da humana. E isso realmente deu certo, a mulher se virou para o lugar. Michael respirou fundo e enfim criou coragem para botar seu plano em ação:
— Tem alguém aí? — ele perguntou com uma sonoridade meio grave e rouca. Estranhou a própria voz. Fazia tempo que não a ouvia.
A humana veio bem devagar, apontando a arma. Michael estremeceu. Mas se manteve erguido. O som dos passos da humana se aproximava. A sombra dela ia aparecendo.
E, enfim, seus olhos se encontraram pela primeira vez.
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Após o Apocalipse
AventuraUm zumbi curiosamente diferente dos demais que precisa controlar seu lado mais incontrolável para não matar sua única amiga. Uma humana que remói uma vida rodeada por mentiras, memórias e a responsabilidade de orgulhar a família e todos que morreram...