Corria sem medo em direção às penumbras daquela fazenda. Desviava dos troncos de árvores e dos pedregulhos do chão. Mas ficava cada vez mais difícil, já que a escuridão ia ficando mais e mais expressiva.
Olhou para o céu. Nuvens escuras cobriam a claridade do dia. Provavelmente iria chover mais tarde. Ela precisaria correr mais rápido se quisesse encontrar Michael antes de encontrar a chuva.
Estava tudo escuro. As folhas secas e sem cor das árvores cobriram o céu, deixando o ambiente quase sem fonte de luz. Millie corria agora com mais cautela para não se esbarrar em nada.
Após minutos de pura escuridão, uma claridade estranha vinda do final da floresta aparecia gradualmente. "Deve ser Michael com uma lanterna!" exclamou.
Mas, à medida que se aproximava, ela ia percebendo que aquela luz não era de uma lanterna. Parecia ser algo mais ambiental, mais amplo. Além disso, aquele cheiro de fumaça estranho agora estava muito mais próximo.
Quando finalmente chegou lá, descobriu que realmente não era uma lanterna. Era fogo. Era uma floresta em chamas.
Lá havia várias árvores, todas mortas e sem folhas. A grama variava entre tons de verde-escuro, amarelo e preto. O céu chegava a ser avermelhado e uma fumaça escuríssima tomava o lugar das nuvens nubladas.
O som das chamas que consumiam lentamente a natureza morta e o resto do que ainda havia de vivo naquele lugar parecia ser o rugido dos espíritos das pessoas que incendiaram o local tentando se libertar. Era de dar arrepios.
Millie mal conseguia respirar e sentia os olhos ardendo. Pôs a mão no nariz e na boca, de modo a evitar que a fumaça entrasse em seus pulmões. O vapor de sua expiração abafada pela boca subia aos seus olhos, o que propiciava a ardência. Estava um inferno tentar respirar ali — o que era bem justificável, já que aquele lugar era o próprio inferno na Terra.
Andava, andava e nada de encontrar Michael. Começou a ficar preocupada. Mas como iria encontrá-lo em meio a tanto fogo e fumaça? Não conseguia ver nem os próprios pés, imagina um zumbi?
Isso a fez ficar ainda mais preocupada. Porque Michael não era o único zumbi que poderia estar se escondendo naquela floresta. Outros deveriam estar ali também.
Virou de costas e olhou o lugar. Um embaçado laranja lhe impossibilitava de ver qualquer coisa a dez metros dela. Virou-se para frente. Uma sensação estranha perturbava mente. Agora tinha a impressão de que estava sendo perseguida.
Mas, maior que aquela sensação era só a sua sede. Aquele monóxido de carbono todo fez sua garganta ficar seca. Abriu a mochila para procurar seu cantil. Sua mão acabou esbarrando num objeto metálico que chamou sua atenção. "O termovisor que eu achei no ferro-velho!" ela se lembrou.
Uma lampadazinha acendeu em sua cabeça. Ligou o termovisor e configurou o que precisava para o aparelho começar a funcionar. A tela ligou e mostrou a versão térmica da floresta: um ambiente amarelo e vermelho. Colocou seu braço na frente do dispositivo para ver de qual cor ficaria: amarelo. Era exatamente aquilo que ela precisava saber.
Bebeu um pouquinho de água e começou a andar com o termovisor em sua frente, como se estivesse filmando o ambiente. Movia o aparelho de um lado para o outro, lentamente. De vez em quando olhava para trás e inspecionava o local com o dispositivo. Tudo amarelo, tudo vermelho. Isso era ruim e bom ao mesmo tempo. Tudo o que ela precisava era de um pontinho azul.
O calor daquele lugar estava insuportável. Suas roupas estavam encharcadas e fedidas e sua pele estava grudenta. De vez em quando, Millie torcia a franja do cabelo, que estava ensopada de suor. Seu querido casaco verde também não ajudava. Era como se todo seu sangue estivesse fervendo debaixo dele.
Millie até pensou em tirá-lo, mas teve receio. Aquele casaco era seu amuleto da sorte, seu talismã. Se sentia protegida o vestindo, como se um escudo invisível estivesse lhe defendendo de todos os males que poderiam machucá-la.
Aquele casaco foi um presente que sua avó lhe deu há muitos anos atrás — muito antes de se falar em Apocalipse. Millie conseguia se lembrar do dia em que vovó Diaz estava costurando seu casaco como se fosse hoje:
— Vira um pouquinho pra a vovó medir sua cintura — ela pediu. Ainda que de saco cheio, a mais nova obedeceu — Levanta os bracinhos, querida.
A menina fez o que a avó havia pedido. Ela passou a fita métrica na cintura da neta, viu o número que havia dado e depois o anotou num caderninho.
— Você tá magrinha, meu bem — comentou — Seu pai inventou de te botar numa academia, foi? — brincou.
— Depois que aqueles dois pirralhos nasceram, meu pai nunca mais me deu atenção... — cruzou os braços.
— Dê um descontinho pra ele, querida, não é nada fácil cuidar de duas crianças pequenas. Ele está trabalhando dobrado pra tentar sustentar você, seus irmãos e sua mãe.
— Foi inventar de ter mais dois filhos pra quê então?! Ter um só já não era o suficiente?! — berrou — Agora meu pai só vive preso naquele laboratório, parece que se esqueceu de mim!
Vovó Diaz respirou fundo. Tirou seus óculos e os pôs na mesa. Depois, se agachou para ficar à altura da neta.
— Querida, é normal se sentir esquecida pelos pais. — acariciou os ombros da menina — Mas eu posso te garantir de que, com o tempo, tudo vai voltar ao normal. Seu pai vai dar um jeito de superar essa fase ruim e vai dar toda a atenção que você merece. Você vai amar seus irmãozinhos e vai perceber que eles te amam também!
A mais nova cruzou os braços e virou a cabeça. Não acreditava naquilo.
— Olhe pra mim, meu bem — a neta olhou de relance — Sempre há um arco-íris depois da tempestade. Se algo ruim está acontecendo agora, é porque Deus está preparando um arco-íris lindo para você! Acredite na vovó!
A menina ainda estava chateada, mas aquelas palavras a fizeram sentir um pouco melhor. Como sempre, sua avó sempre conseguia melhorar tudo.
Deu um sorrisinho disfarçado. "É, talvez ter irmãos não seja tão ruim assim..."
— Vamos continuar a fazer seu casaquinho? Só falta medir sua cintura.
— Mas a senhora acabou de medir!
— Ah, já? — perguntou. A neta fez que sim com a cabeça — Oh, meu Deus. Sua vó está ficando velha, Emília.
As duas caíram na gargalhada. Vovó Diaz estendeu os braços, convidando a neta para um abraço.
Millie também estendeu os braços, indo direto para o colo de sua avó. Quando percebeu que não havia ninguém ali. Ela estava sozinha. Não estava numa casa aconchegante. Estava numa floresta em chamas. Sua avó estava morta. E ela estava sozinha agora.
Olhou para seu casaco. Seu querido casaco. Abraçou a si mesma, como se estivesse abraçando o espírito da avó. Sentiu os olhos encharcarem. Sentiu a garganta travar. Sentiu uma lágrima doída escorrer pela bochecha.
"Não, eu não posso chorar agora" combateu aquele sentimento "Preciso ser forte". Em breve seu arco-íris iria chegar. Só precisava ser forte e superar aquela tempestade — por mais que não tivesse mais forças para continuar.
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Após o Apocalipse
PertualanganUm zumbi curiosamente diferente dos demais que precisa controlar seu lado mais incontrolável para não matar sua única amiga. Uma humana que remói uma vida rodeada por mentiras, memórias e a responsabilidade de orgulhar a família e todos que morreram...