Márcia atravessou o corredor que levava ao bar apenas alguns passos atrás de Inês, mas foi o suficiente para perder ela de vista no mar de pessoas que estavam lá dentro. Camila estava no palco, em um vestido azul que parecia querer cair de seu corpo com apenas um sopro — o que só não encantava mais do que a sua voz, que preenchia o ambiente. A fina fumaça que se fazia visível na luz opaca e colorida, não impedia que Márcia observasse com detalhes o que estava a sua frente. Algumas pessoas tinham escamas ao invés de pele, garras ao invés de unhas, olhos brancos, amarelos, vermelhos... Outras se pareciam com ela, mas não a enganavam. Ela respirou fundo ao perceber que essa era uma festa de entidades, apenas de entidades. Nem mesmo Eric parecia estar ali para lhe fazer companhia. Absorvendo esse fato enquanto abria espaço entre as pessoas à procura de Inês, Márcia tentou manter a postura firme. Mas a verdade é que poucas vezes se sentiu tão intimidada quanto naquele momento, rodeada por seres tão poderosos. Ela já não tinha medo deles, apenas um respeito tão grande que a fez se sentir uma intrusa em meio a gigantes.
Márcia não sabia porque estava surpresa. Ela devia ter ligado dois pontos simples: se essa é uma celebração de entidades pela vitória contra uma entidade, quem seriam as únicas pessoas na festa? O calor dos corpos fez com que gotas de suor começassem a se formar em sua testa. A jovem sentiu que não estava conseguindo mais levar ar suficiente a seus pulmões e começou a ficar ofegante. Aos poucos, sua mente não parecia mais estar funcionando com tanta clareza. Então, após alguns minutos sem sucesso em sua busca por Inês, a detetive tentou encontrar ao menos rostos familiares. Seu olhar cruzou com o de Caipora, mas a entidade rapidamente virou rosto e se esgueirou pela aglomeração até sair do campo de visão de Márcia. Ou é remorso ou ela não gosta mesmo de mim, a jovem tentou decidir, mas não conseguiu. Iberê estava encostado no balcão de bebidas, agarrado à uma garrafa de cachaça, rindo e falando alto com um grupo de pessoas que formava um semicírculo ao seu redor. Ele definitivamente não parecia alguém com disposição para se incomodar a ajudá-la. E Camila estava imersa demais em sua canção para poder nota-la... As mãos da jovem começaram a suar. Ela já não sabia se a causa do mal-estar era o calor, a frustração, a vontade de correr dali enquanto seus joelhos ainda pareciam querer cooperar ou... Márcia sentiu uma pressão em suas costas e imediatamente se virou à procura da origem do toque. Seus olhos travaram com os de Inês.
A mais velha não disse nada, apenas se aproximou de Márcia e soprou levemente os seus lábios. Um calafrio percorreu o corpo da mais jovem e o calor cessou. Suas mãos pararam de suar e ela voltou a encontrar certa coerência em seus pensamentos. Sem desviar o olhar ou se afastar, Inês ergueu seu braço por um instante e, imediatamente, a música parou. Grunhidos em protesto duraram apenas alguns segundos antes que Camila os interrompesse.
— Senhoras e senhores, gostaria de pedir um minuto da atenção de vocês – O silêncio varreu o ambiente. Mas a detetive não deu muita importância para o porquê. O olhar de Inês era tudo que lhe importava naquele momento — Essa noite é muito especial para todos nós. Lutamos há anos, há décadas, há séculos pela paz, prosperidade e segurança da Terra e daqueles que nela vivem. Vencemos mais uma batalha graças a uma aliada muito especial, que não tem poderes ou qualquer outro escudo senão sua coragem. Gostaria que todos recebessem com gentileza nossa nova companheira, Márcia. — O seu nome, seguido do barulho dos aplausos, despertou Márcia de seu transe com um pequeno pulo.
— Bem-vinda. — Inês sussurrou, antes de se afastar. Márcia tentou pará-la, mas um grupo de pessoas se colocou entre as duas para agradecer a detetive.
Márcia colocou a frustração de lado e não ignorou as demonstrações de carinho que mostravam que as entidades viam nela alguém comum em quem pudessem confiar. Mas ela sabia que aquela vitória era um feito de ambos os mundos. Para ambos os mundos, como sempre. Ela foi a chave dessa vez, mas quantas vezes, nas sombras, essas pessoas que estavam expressando sua gratidão, não salvaram nossa fauna, nossa flora, nossa gente? Então, naquele momento, ela aproveitou para agradecê-los de volta, para abraçá-los de volta.