Você Confia Em Mim?

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Terra chamando Tia Márcia! - Um estalar de dedos a puxou de volta à realidade...

- Desculpa, pequena! A tia foi longe! Onde a gente parou? - sentada na beira da cama de Luna, Márcia retoma a atenção para a criança deitada com seu pijama amarelo.

- Você tava lendo sobre a Cuca - Luna respondeu, apontando para uma parte do livro de capa vermelha. Uma mulher velha, feia e vestida em trapos pretos estampava a página. Márcia abriu um sorriso largo, a imagem era tão distante da verdade... Deixando a voz mais grossa, dando ênfase em cada frase, como se contasse uma história de terror, continuou:

- A Cuca rouba as crianças desobedientes. Ela dorme uma vez a cada sete anos. Por isso, os pais tentam convencer as crianças a dormirem na hora certa pois, caso contrário, serão levadas pela Cuca. Dizem que quando a bruxa fica brava, ela solta um berro que dá pra ouvir a 10 léguas de distância! - Marcia fechou o livro de repente, com uma batida alta, assustando Luna, que logo soltou uma risada alta.

- Não é atoa que ela é tão brava, Tia... - Luna se afundou ainda mais em seus travesseiros, bocejando - Já pensou, só poder dormir uma vezinha em sete anos?

- Pois é! Acho a magia dela tem um preço, talvez esse seja um valor que... - Márcia percebeu que os olhos de Luna começaram a pesar, a menina provavelmente estava ocupada demais seguindo o chamar dos sonhos para lhe dar atenção - boa noite, pequena! - disse depositando um beijo na testa da menina e apagando o abajur.

- Boa noite, Tia! - respondeu quase como um murmúrio. Não houve pesadelos desde que a Cuca lhe visitou da última vez, nem angústia, nem medo, era como se Luna tivesse voltado a ser uma criança. Com traumas, é claro, mas sem aquele peso que não era destinado a ela.

Márcia levou o livro até a sala. No sofá continuou a ler os contos. A maioria já tinha lido para Luna, mas alguns ainda lhe eram desconhecidos. Ela começou a folhear as páginas, parando em algumas imagens que lhe chamavam a atenção: Boitatá, Caipora, Mula Sem Cabeça, seriam todos reais?... Seus olhos também começaram a pesar, os sonhos já estavam a chamando também, um irresistível convite. Sua respiração cansada preencheu o ambiente, seus olhos já tinham desistido de lutar e estavam fechados quando uma mão delicada tocou seu ombro, a assustando.

- Desculpa, minha filha, não queria te assustar! - Januária disse, enquanto Márcia se colocava de pé.

- Não foi nada não, dona Januária! E como foi o jogo?

- Foi ótimo! Ganhei todas! Devia ter apostado dinheiro, mas aí acho que não iam mais me deixar jogar! - As duas compartilharam uma gargalhada.

- Seria até injusto, né, dona Januária?! A gente sabe que ninguém joga tranca tão bem como a senhora! - Quando Macia alcançou as chaves do carro que estavam na mesinha de centro, Januária franziu o cenho preocupada.

- Tá tarde, menina! A essa hora só tem desajuizado na rua! Por que você não dorme aqui hoje?

- Obrigada de coração pelo convite, mas eu preciso ir pra casa, tenho algumas coisas pra resolver! - Ela guardou o livro na estante da sala e foi em direção a mais velha para se despedir.

- Certeza? - Márcia confirmou com a cabeça, antes de envolver Januária num abraço apertado, a mais velha retribuiu de imediato - Então tá bom! Muito obrigada por hoje por tudo, minha filha! - apertou ainda mais o abraço - Tudo!

- Não tem nada que me agradecer não, dona Januária! Se a senhora e a Luna tiverem bem, já é a minha satisfação! - o abraço se afrochou um pouco, mas elas continuaram alí, no conforto do aconchego da outra.

Márcia teve um rompimento difícil com sua mãe e, no fundo, sempre esteve carente desse afeto. Às vezes se sentia meio infantil quando se percebia com a esperança de um dia encontrar alguém que preenchesse esse vazio materno, mas não conseguia evitar. Agora, no conforto do abraço de Januária, ela pensou que talvez não fosse uma esperança tão absurda. Talvez nunca seja tarde pra encontrar o carinho que lhe foi negado.

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