Marta, por quê?

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— Não solta minha mão! — A voz desesperada de Inês se misturou com o barulho da confusão que crescia entre as entidades quando um breu cobriu o bar de repente.

— A energia caiu Inês, deve ter passado um caminhão no poste, pra quê esse fuzuê todo? — Márcia sabia que, se pudesse enxergar, veria sua mão roxa, tamanha a força do aperto de Inês.

— Quanto você bebeu? Desde quando você perde uma oportunidade de ficar desconfiada?

A mais jovem bufou ao trombar com mais uma entidade no emaranhado de corpos enquanto Inês a arrastava às cegas pelo lugar. Não havia muitos motivos para Márcia ficar desconfiada. Na verdade, ela ficou levemente aliviada quando todas as luzes para saída de emergência acenderam, mais um ponto para o estabelecimento de Inês. Mas era nítido que não levar uma multa era a última coisa na lista de preocupações da bruxa, que estava focada em chegar novamente ao balcão do bar. Era no escuro que Sandra gostava de agir. Era no escuro que ela agiria.

Quando finalmente encontrou a peça de madeira maciça do balcão, Inês começou a tatear o caminho a procura de Iberê, mas só consegiu fazer com que vários copos se despedaçacem no chão. Como situações desesperadas requerem medidas desesperadas, a bruxa começou a cantarolar o mais alto que pôde.

— Lá vem o Curupira! Tuxaua, cadê o Curupira?

— Já chegou o Curupira! — Iberê completou, a poucos centímetros das mulheres, fazendo com que elas recuassem um pouco com o susto. A voz da entidade saía arrastada por conta da bebida — Vamos tomar paiarú Curupira! Vamos dançar, Curu...

— Isso é um tipo de Marco Pollo entre vocês? — Márcia sussurrou no ouvido de Inês.

— Mais ou menos. Ele adora cantar isso quando fica bêbado. — A bruxa encontrou o ombro de Iberê e o sacudiu levemente — Eu estou fraca e a Sandra sabe disso. Esse breu é coisa dela e você precisa me ajudar.

— E o que eu ganho com isso? — Ele respondeu com um tom afetado.

— Não sei, talvez não deixar a pessoa que devorava indígenas por diversão se tornar a entidade mais poderosa seja ganho suficiente — Mesmo sem ver a cara dele, Inês sabia que Iberê ainda estava ponderando o que ela disse.

— Bom ponto.

Inês respirou fundo, pronta para explicar algum plano que tivesse pensado no momento, mas a volta das luzes a interrompeu. Camila voltou a cantar e as entidades próximas ao pequeno palco voltaram a dançar. Seus instintos falharam mais uma vez, nenhum perigo aparente.

— Numa escala de zero a dez, sendo dez o pior, a gente tá falando de fraca quanto? — A voz exalando alcool fez com que Inês cobrisse o nariz sutilmente.

— Vinte entra na sua escala? — Iberê pensou um pouco na pergunta da bruxa e respondeu que sim balançando a cabeça — Então, vinte.

— Eita maravilha! Então eu vou virar mais umas duas garrafas antes de você decidir o que a gente vai fazer, tá bom querida? — Inês e Márcia assistiram quase com pena Iberê se arrastar por cima do balcão, cair do outro lado e se levantar cambaleante em direção à parede de bebidas.

Aquilo tudo era muito patético. Inês estava fraca como nunca, sua companhia da noite era uma mortal, a segunda entidade mais poderosa da festa estava se banhando em álcool... literalmente, a bruxa constatou com pesar ao notar que Iberê estava virando o conteúdo de uma garrafa grande sobre si. Patético... Quase patético demais...

— Ela não está atrás de mim... — Inês sussurrou, mas foi o suficiente para chamar a atenção de Márcia — Não ainda... Do que a Sandra te chamou quando te viu?

— Marta, por quê? — Com a resposta, a bruxa pareceu ficar alguns tons mais branca, o que não passou despercebido por Márcia — Inês, quem é Marta?

— A tia do homem que se transformou no corpo-seco. Ela vai atrás da...

— Luna — Márcia chamou, como se pudesse alertar a menina, e começou a procurar a saída do bar, atravessando o emaranhado de entidades como se não houvesse ninguém em sua frente.

A detetive não esperou por Inês. Assim que atravessou a porta para a rua, correu para o carro e dirigiu em direção à casa de Januária o mais rápido que o veículo lhe permitia. Depois de dois quilômetros percorridos, numa mistura de medo, raiva, preocupação e adrenalina, Márcia sentiu que ia vomitar. Ela pressionou os botões do seu lado esquerdo e abriu uma fresta na janela do passageiro, para que pudesse sentir o ar circular e talvez segurar a comida dentro de seu estômago.

O pequeno espaço aberto entre o vidro e o metal na janela do passageiro foi mais que suficiente para que asas azuis atravessassem para dentro do veículo. Mas não sem ser jogada com força para a parte de trás do carro, caindo sem jeito na assento atrás da motorista.

— Que eu saiba a regra é chegar juntas e sair juntas! — A voz reprentina de Inês em seu ouvido fez com que Márcia saltasse no próprio banco. O volante rodou nas mãos da detetive. Ela apertou o freio de mão o mais rápido que pôde, fazendo com que a bruxa fosse jogada para a parte da frente.

Elas ficaram paradas por um momento e o carro ficou parado no meio da rua pouco movimentada. Inês se repompos no banco do passageiro, pressionando a parte de sua cabeça dolorida que atingiu alguma parte do carro. Márcia só conseguiu lançar um olhar furioso para a bruxa.

— Desculpa, na minha mente essa entrada era mais tranquila... — Isso não suavizou a expressão de Márcia — Escuta, você não pode fazer isso sozinha. Se a Sandra alcançou a Luna é muito provável que ela já tenha enfeitiçado a menina. Essa mulher é uma das criaturas mais traiçoeiras que eu conheci. Não tem como fazer isso sozinha. Você não vai sozinha — Inês enxugou uma lágrima solitária que escorreu pelo rosto da mais jovem. Luna já passou por tanto, não era justo — E nós vamos garantir que ela não fique sozinha também — Essa fala foi o sinal verde, Márcia respirou fundo e colocou o carro em movimento mais uma vez.

A poucos metros do carro de Márcia, dois outros carros a seguiam de perto. A detetive conseguiu ver alguns dos rostos pelo retrovisor. Entidades. Definitivamente ela não estaria sozinha. Naquele momento a jovem entendeu que essa caça as bruxas não seria apenas sobre uma menina. Novamente seria sobre o destino das entidades e do mundo que ela conheceu a pouco tempo. O escapamento de uma moto ao longe a tirou de seu transe. O piloto, que ela imediatamente reconheceu como sendo Iberê, a ultrapassou na avenida que entraram. Vamos. Inês delicadamente afastou uma mecha de cabelo do rosto da mais jovem antes de fechar o vidro da janela para conter o vento. Vamos juntas

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⏰ Última atualização: Jul 06, 2023 ⏰

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