Caipora, não!

1K 131 64
                                    

Quando Márcia retornou para a fogueira pela sétima vez, Laerte já estava a sua espera. Ele não gritou, não gemeu, não emitiu som algum. Parecia estudar a policial, encarando-a com intensidade. Talvez em alguma parte de sua feição lúgubre e desfigurada houvesse surpresa. De todos os encontros isso foi o que mais perturbou a detetive: o silêncio.

-  O que você tá esperando bicho feio? - a jovem questionou, firme. Então ele finalmente usou sua voz e o que parecia ser uma risada envolveu o ambiente. O som macabro arrepiou todos os pelos no corpo de Márcia, mas ela tentou não demonstrar seu abalo.

"Ele sabe." Márcia constatou, surpresa. Ele compreendeu o que ela estava fazendo, que estava encarando seus gritos para que pudesse entregá-lo ao mundo dos mortos.

- Puta que pariu! Ele percebeu. -  Eric sussurrou perturbado, mais para si mesmo do que para Curupira que estava ao seu lado, enquanto assistia o que se passava a alguns metros de distância.

- Não vamos dar tanto crédito à inteligência dele. - Inês disse, se juntando a eles. - Está tudo pronto na parte de vocês meninas?

- Sim. - Camila e Caipora responderam em uníssono se aproximando do resto do grupo, silhuetas iluminadas apenas pela pouca luz fornecida pela lua através da copa das árvores.

- Ótimo. Chegou a hora. - a bruxa respirou fundo e encarou de longe a jovem que lhe roubou o fôlego há poucos minutos.

- Eu também cansei de gritar... Posso cantar um pouco pra você agora? - Márcia não esperou a resposta e começou a cantarolar, tentando esconder o temor em sua voz. -  Tem cuidado caçador que lá vem dona Caipora. Não tem chapéu nem espora, mas monta um porco do mato. Se és matador de fato, Caipora te pega agora! - Então um grito estridente emanou do meio da floresta. Um vulto atravessou o ar entre Márcia e Bradador, e a fogueira se agitou como se lhe houssem adicionado polvora. Laerte pouco se abalou com a cena - Ele vem caçar caçadores. É o devaneio do invasor. É o medo, pesadelo, para os perdidos o terror. Guardião da vida, ele é o Curupira. - O grito e assovio inigualáveia de Iberê preencheram a mata e o fogo, próprio da entidade, rodeou o espaço em que estavam mortal e alma rejeitada por entre as árvores -  Dentro do rio Amazonas, nas águas de remansar, vive a poderosa Iara, cantando para encantar os rapazes ribeirinhos, cheia de carinho, para com eles nadar. - Talvez se ela estivesse cantando isso para uma pessoa normal, numa situação normal, Márcia sentisse vergonha. Mas nesse momento, cantando para esse ser horrendo, enquanto as gotas de água nas folhas das árvores caiam ao chão e formavam um redemoinho envolta deles, ela só se concentrava em cantar a música com toda força e emoção que tinha.

Quando o redemoinho cessou e nada extraordinario aconteceu, Laerte mais uma vez soltou sua risada medonha. "Essa parte", Márcia constatou aliviada, "ele não entendeu."

Nana neném, que Cuca vem pegar

Não queriam atingi-lo, pois isso seria inútil. Como atingir uma alma que se dissolve como o vento?

Papai foi pra roça

A borboleta azul se aproximou, delicadamente,  contornando o Bradador em seu vôo.

Mamãe foi trabalhar

E então a entidade pousou em sua face pálida. Face que estava firme como a minha e a sua. Ele tentou, mas não pôde se dissolver. Sentiu o toque das pequenas asas em seus olhos, o primeiro toque que ele pôde sentir em séculos. O fogo, os gritos, a água... Parte de um ritual para transformar o espírito em algo tangível.

Inês adentrou a mente dele e aquele era provavelmente o lugar mais escuro que visitara. Não havia nada alí além de dor e sofrimento, angustia e desespero... Abriu o máximo de portas que conseguiu antes de libertar a assombração de seu encanto. Liberou memórias que angustiaria até mesmo a mais vivida das entidades, e então se retirou, batendo suas asas poucas vezes antes de se transformar. Nessa altura do campeonato ela não podia se afastar muito de Márcia, era muito arriscado, então ficou apenas longe o suficiente para sair do campo de visão do Bradador.

Não demorou muito para que uma espécie de pânico emanasse da alma perdida. Ele encarou Márcia intensamente como se a estivesse reconhecendo, soltou um grunhido angustiado e então aconteceu, o sétimo grito percorreu toda a floresta, "talvez tenha alcançado 10 mil léguas como o da Inês" Márcia pensou, o som tão alto e vibrante que ela teve que se concentrar para ficar no lugar ao invés de recuar.

Aos poucos a altura do grito foi diminuindo e a alma já não flutuava no ar. O som foi cessando e a assombração já não estava mais tão pálida. O berro deu lugar a um gemido, em seguida a um choro cheio de soluços e o que estava na frente de Márcia não era mais o Bradador, mas sim Laerte, agora de joelhos no chão. A única coisa que parecia desajustada era a veste: pesada, rasgada e nitidamente antiga. Mas as expressões, os movimentos, sons e lágrimas eram de um homem comum.

Ele olhou para Márcia como se fizesse uma suplica e abriu os lábios como se tentasse se comunicar, mas sua voz estava rouca demais para que a detetive entendesse. "Os gritos", ela constatou, "tiraram a voz dele". Laerte estava alheio a tudo e a todos, apenas encarando a mulher a sua frente, mas a jovem notou o movimento atrás dele. A mão direita Curupira e a mão esquerda de Caipora se uniram enquanto as mãos vazias tocaram o solo, eles fecharam os olhos e fizeram um tipo de prece, então um buraco se abriu na Terra. Um pequeno buraco do tamanho de uma cova.

Laerte continuava a chorar copiosamente, até que Inês se colocou entre ele e Márcia. O homem lançou um olhar assassino para a entidade. Ele se colocou de pé com dificuldade, mas tantos séculos flutuando o fizeram perder a prática com as pernas para que pudesse alcançar a bruxa.

Nana neném que a cuca já vem

Essa versão a detetive nunca tinha ouvido sair dos lábios da bruxa, talvez fosse algo mais forte. "Mas se ele já estava no chão como um homem" a detetive questionou a si mesma enquanto se colocava ao lado de Inês "Pra que ela precisa de algo mais forte?"

Papai foi pra roça

- Não acabou. - Márcia pensou alto ao ver que a forma de Laerte oscilava, ora corpo tangível, ora apenas alma. Talvez fosse isso que a bruxa estivesse tentando controlar.

Mamãe pra Belém

Inês começou a repetir o canto enquanto atrás de Laerte, Caipora preparava uma flecha num arco, apontando para o homem a frente da bruxa. "Espera. Ela não tá vendo que ele tá oscilando?"

Dorme neném que a Cuca já vem

Não, não estava.

Papai foi pra roça,

- Inaiê! - Márcia gritou e acenou, em vão. Ela se virou para Inês e chamou seu nome, mas ela não respondeu, seu olhar estava distante, numa espécie de tranze. A jovem tentou empurra-la, mas entidade parecia fincada como pedra na Terra. Inaiê estava com o arco em posição, seu cotovelo e base da flecha puxados ao máximo para trás - Caipora, não!

E mamãe pra Belém.

Então a flecha se soltou do arco e passou pelo corpo de Laerte sem ao menos toca-lo. Quando a flecha atingiu o peito da mulher que roubou o ar de seus pulmões e fez seus lábios desejarem outro como nunca antes, Inês finalmente saiu do transe.

Visita NoturnaOnde histórias criam vida. Descubra agora