O CASAMENTO

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Foi um desastre, do início ao fim.

A começar pela escolha dos novos sobrenomes.

— Eu não vou me chamar Alice Petrescu nem fodendo.

Alice me encarou com os olhos verdes flamejantes, as mãos miúdas na cintura fina, de pé diante dos inúmeros documentos de identificação espalhados na mesa de centro. Nenhum deles era falsificado. Apenas ligeiramente modificados.

Quem a olha assim, pensa em “gostosa” ou “fofa do caralho”, não em “líder dos vampiros” ou “mais letal que uma foice”.

— E eu me recuso a ter um nome turco. — Cruzei os braços e levantei o queixo, mais por hábito. Um do qual estou lutando para me livrar perto dela. — Que tal Alice de Souza Beiruth-Petrescu?

— Por que só eu vou mudar meu nome?

Alice trocou o peso da perna e pendeu a cabeça. É irritantemente fascinante o quanto meu peito se aquece com cada mínimo movimento seu.

— Também podemos mudar os dois… não sei, talvez Draculeanu.

Alice vincou ainda mais as sobrancelhas e recuou com um repuxar de nariz. Sempre que faz isso suas sardas se acentuam, e guardo para mim um imenso desejo de tomar seu rosto nas mãos e beijar toda a extensão delas.

Céus, desde a primeira vez em que meus olhos bateram nessas sardas claras pontilhando seu nariz e nas bochechas pálidas, uma vontade louca de mordê-las ou apertá-las me dominou. Não me pergunte o porquê, não sei explicar.

— Eu não quero ser diretamente relacionada ao Drácula! Tipo, a pessoa vai ver meu nome e dizer “ih, olha aí a tataraneta do cara que dizimou a vila dos meus tataravôs”. E mais — ela aponta o indicador para mim —, você não disse que dracul também pode significar “demônio” ou “dragão”? Não quero que meu nome de família seja “filha do demônio”! — Alice suavizou a voz e a carranca para continuar. Às vezes, Alice lembra mais Heloise do que percebe. — Tem que ser algo só nosso.

Sabendo que não tinha muito mais o que argumentar, pois essa teimosa não ia mudar de ideia, suspirei e esfreguei a nuca.

Observei-a remexer os lábios enquanto batucava no queixo com aquele mesmo dedo que apontara para mim. Um tique seu quando fica ansiosa que percebi com o tempo. Um sorriso se infiltrou no canto dos meus lábios e eu soube naquele instante qual seria nosso sobrenome de casado.

É primordial que ela tenha um outro sobrenome. De certa forma, para mim, por um desejo egoísta de protegê-la de todas as maneiras possíveis, mas também porque duvido muito que Alice gostaria de, acidentalmente, entregar seu nome e, por consequência, o domínio sobre si mesma para uma criatura mágica que possa usar isso contra ela. Como acontecera comigo.

Viver quase quarenta anos com o aperto forte de Arachn’y em volta do meu pescoço e uma focinheira na boca me ensinou muitas coisas. Eu não era nada mais do que um animal de estimação para ela e as Olhos Famintos. Talvez menos. Se eu cedesse e parasse por uns instantes para deixar as memórias fluírem, tenho certeza de que ainda recordaria cada detalhe. Seu sorriso torto, a maneira como a bruxa costumava me vigiar com uma satisfação compassiva no vértice daqueles olhos violeta, sentada confortavelmente em seu trono feito de galhos, enquanto suas aprendizes riam ao me ver comer um rato morto. Afinal, as bruxas não têm o hábito de se alimentarem de seres de sangue quente, então ver uma criatura considerada “sangue frio” — como os répteis que costumam petiscar — devorar um deles, é um entretenimento e tanto.

Só de imaginar que, por um passo em falso, Alice poderia passar por algo assim… Não, tomarei todas as precauções necessárias para que algo assim não chegue perto de acontecer. E se acontecer, é bom que, quem quer que seja o infeliz, saiba que este foi seu último momento na Terra.

Não obstante, esse não é o único motivo. Além de termos nacionalidades diferentes, nossas identidades teriam de mudar com o tempo e a localização, assim como faço com a minha. Honestamente, não me importaria de ser um fantasma, vagando por aí despercebido. Porém, mesmo usando dinheiro à vista e uma conta bancária numerada, para adquirir bens materiais mais significativos precisei ter algo que comprovasse minha existência. E também queria sentir o prazer de possuir algo em meu nome, sentir que possuo o controle da minha vida. Eu poderia muito bem mandar um dos meus subordinados comprar carros ou casas para mim, mas não ia dar a satisfação aos desgraçados de ter algo no nome deles. Chega de coleiras. Eu mesmo seguraria a guia.

O segundo passo mais doloroso do casório foi a decisão do local. Heloise queria uma catedral, Fernanda sugeriu um sítio, e a manada de primas e tias que ainda está viva da Alice propuseram inúmeras casas de eventos. Eu? Teria me casado na porra do quarto dela, desde que se decidissem logo. Mas depois de muito ponderar, a escolha da Alice pegou a todos desprevenidos, inclusive a mim.

— É onde começamos o nosso “felizes para sempre” — disse ela, quando estávamos deitados na minha cama… quer dizer, nossa cama, depois de uma foda enlouquecedora, e perguntei se estava certa de sua decisão.

Pensei que Alice iria querer ficar a meio mundo de distância daquele lugar, mas eu nunca a vira tão eufórica quanto quando chegamos à cabana abandonada no meio da Floresta da Tijuca, para arrumarmos a decoração.

Ela, Fernanda e Melissa enfeitaram o telhado e as vigas com flores brancas enquanto Heloise ninava Clarisse. Eu, Gabriel e Igor penduramos pisca-piscas, que seguiam do telhado da cabana aos galhos altos das árvores. Quando iluminamos a clareira com lanternas coloniais ao pé das árvores, o ambiente escuro e medonho se transformou.

No vão da porta, colocou-se uma mesa onde ficaria o cerimonialista. Para os convidados se sentarem, foram espalhadas almofadas nas laterais.
Isso mesmo. Almofadas. Na terra. Eu nem tentei objetar.

Ao menos as poucas mesas de madeira que se espalhavam pelo outro lado da clareira, às costas do chalé, contavam com cadeiras decentes para seus familiares.

Não, eles ainda não me aceitaram. E eu não poderia estar cagando menos.
A única pessoa que convidaria estava muito longe. Conry vai me trucidar quando souber que não o chamei para o casamento, depois de todos esses anos separados, mas acredito que ainda não é a hora certa de apresentá-lo a Alice. Não quero soterrá-la com informações.

A comprida mesa onde seriam dispostas as travessas de comidas e bandejas de doces do buffet contratado — a única coisa realmente cara na qual fizeram questão de torrar o meu dinheiro —, fora posta nos fundos da cabana, que emolduraram de flores brancas e vermelhas e lâmpadas bubônicas. Essas mulheres têm um talento artesanal assustador.

Menos Alice. Minha esposa não consegue acertar um único laço. Mas isso não me incomoda em nada, porque ela é ótima em várias outras coisas. Como cozinhar, que ela descobriu gostar muito, e rebolar no meu pau.

Num dado momento, os ventos de março começaram a balançar os pisca-piscas, e todos paramos o que estávamos fazendo a fim de olhar para cima, como se pudéssemos prever o que estava para acontecer. Porém, de todos os piores cenários que cruzaram nossa mente naquele instante, nenhum deles se compararia ao que realmente aconteceu.

Mas ninguém, além de mim, soube o que de fato aconteceu.

Futu-i! — xinguei em romeno, passando as mãos pelo cabelo recém-aparado e agarrando entre os dedos as mechas que consegui.

Deixei o ar sair pela boca enquanto observava a clareira, passos adiante de onde estacionei a Harley.

Houve uma tempestade naquela noite, enquanto todos estavam dormindo, inclusive eu e Alice após transarmos como animais no cio. De manhã, ela foi para o spa com Melissa e as primas, e eu segui para a maldita clareira. Estava tudo revirado, empoçado, quebrado, arrebentado. As mesas tombadas, cadeiras partidas, vasos estilhaçados, os pisca-piscas caídos e estourados, as almofadas enlameadas… Quando Alice me ligou informando que iam pegar o vestido, a animação e o nervosismo nítidos na voz, não tive coragem de contar a ela o que aconteceu. Queria que ela tivesse o dia perfeito que sempre sonhara. Eu daria um jeito naquela bagunça, de uma forma ou de outra.

Se não conseguisse, eu iria explicar e remarcaríamos a data. Mas não sem antes tentar.

Tinha menos de quatro horas para organizar tudo e voltar à cobertura para colocar o smoking. Mesmo se eu chamasse uma equipe de restauração, levaria duas horas só para chegarem até ali. Então arregacei as mangas da camisa e entrei na clareira. Naquele momento, me arrependi de não ter chamado Conry.

É óbvio que não ficou do mesmo jeito, no entanto, não ficou tão ruim. Eu acho. Sei lá, não tenho o menor tato para essas coisas. Terminei de quebrar as pernas das cadeiras que não tinham mais jeito, e as usei de assentos para o local da cerimônia. Eles que se revessassem na hora de comer. As mesas estavam intactas, somente imundas, então tirei a camisa e a usei como pano. Quando conectei os fios dos pisca-piscas, percebi que os dias de arrombamento domiciliar e roubo de carros vieram a calhar. Quem diria que as habilidades que desenvolvi como um Kape da máfia me seriam úteis séculos depois, no meu próprio casamento, quando estava me escondendo deles para manter a mulher que amo a salvo.

Ter feito parte da máfia vampira nunca foi uma questão de vergonha ou arrependimento para mim. Mas a partir do momento em que reconheci Alice como minha parceira, eu soube que precisaria despistá-los para mantê-los longe dela. Quanto menor for a relação dela com a máfia, melhor física e psicologicamente será para ela.

Só existem duas coisas que interferem nesse planejamento: eu, um elo indireto, e o fato de agora ela ser a Primus, um elo direto. Eles não são muito diferentes dos cartéis que se vê por aí. Traficam, subornam, extorquem e matam a mando do Chefe com um orgulho que é quase louvável. Cada um sabe seu lugar na hierarquia. Ninguém que entrou para a máfia vampira sai da linha, seja por admiração e obediência ao Kape de um território ou ao próprio Chefe. Tive o desprazer de presenciar uma única vez o que acontece com quem decide não seguir as regras, e foi o bastante.

No entanto, o único detalhe que os diferencia das organizações criminosas humanas é o suficiente para qualquer pessoa sã da cabeça querer se manter o mais afastada possível. É como se reunissem as pessoas mais psicóticas, masoquistas e sadistas da Deep web, e adicionassem o fator “se alimentam de sangue”.

Não sou páreo para deter todos eles. Os associados e os soldados podem não ser tão habilidosos intelectualmente, porém seus comandantes sim… Eu fui um deles, sei como funciona. Alice, no estado recém-transformada em que está, também não daria conta, por isso pedi ajuda à Melissa. Ela sabe da minha história, então, por mais que eu deteste a ideia, a única alternativa que nos resta é fugir. Mas, cacete, dói admitir que eu sei que esse dia chegará. Só quero ganhar tempo para ela, para nós.

Já pensei muito sobre isso, nessa ilusão de vida que vou criar, e quando a realidade chegar para cobrar seu preço, vai nos nocautear. Por isso eu e Alice preferimos manter tudo às claras, para não criarmos expectativas altas e indesejáveis comoções subsequentes. Entretanto, dessa forma, vou acabar escondendo mais uma coisa dela. Caralho, e como isso me atormenta a cada maldito dia. Mas minha esposa passou por muita coisa recentemente, ela precisa recuperar o fôlego, descansar, ter tempo para entender sua nova condição. E espero que este “tempo” seja rápido o bastante comigo aqui para ajudar no processo. Decidi, então, que não vou levar essa ilusão muito a fundo, que vou mantê-la rasa. A queda é inevitável, mas pelo menos posso facilitar o impacto.
Cabana arrumada, enfeites e móveis recuperados, e já estava na hora de voltar à cobertura, tomar um belo banho para me livrar da terra e me recompor para a festa.

Quando fiquei em frente ao espelho e me vi usando um terno feito sob medida depois de me barbear, a ficha enfim caiu: eu iria me casar. Com a pessoa que eu amo. Com alguém que me ama pelo que sou. Ou pelo menos que ama a parte que conhece de mim. Depois de 297 anos e 2.601.720 horas, este foi o único momento em que realmente me senti nervoso.

Liberei o ar, ainda com o olhar cinza fixo em meu reflexo pétreo.

Talvez tenha durado um milésimo de segundo, talvez nem tenha acontecido, mas juro que pude visualizar meu passado inteiro transcorrer na superfície do espelho como uma projeção assombrosa. Porque as imagens que vi — minha vida em Câmpulung junto à minha família na fazenda, a guerra interminável que nos assolava, a traição do meu melhor amigo, o ninho de Arachn’y (aqui, meus dedos vacilaram ao finalizar o nó na gravata ao redor do meu pescoço), a mão estendida de Ştefan, o encontro com Melissa, minha saída da máfia, a morte dos pais de Heloise — se misturavam com a noite em que senti uma força opressora possuir meu peito, meu corpo. A sensação se tornava cada vez mais inquisidora, quente e aconchegante, conforme me levava em direção a um bairro de classe média, num país de terceiro mundo, que eu visitava frequentemente sem saber o porquê. Me puxava para uma rua simplória e deserta, para uma casa humilde, saturada de plantas, onde no segundo andar havia uma jovem ruiva dançando, cantando e rindo sozinha no quarto.

A essa altura eu era um ímã ambulante. Não era capaz de desgrudar os olhos da garota.

Sentei no telhado da casa em frente, os nós dos dedos escorando a maçã do meu rosto, entretido pela cena caótica e espontânea que observava. Estava hipnotizado. Se alguém me acertasse uma flecha, eu mal sentiria. Me peguei rindo de verdade pela primeira vez em muitos anos.

Até que o cheiro de sangue penetrou meus sentidos.

E não de qualquer sangue. No mesmo instante eu o reconheci. Qualquer vampiro identificaria um aroma mais adocicado que o perfume de jasmins e cerejeiras. Foi quando meu entretenimento se tornou aflição, e meu corpo entrou em alerta.

Desci do telhado às pressas e atravessei a rua, pouco antes da garota ir até a janela. Pulei o pequeno portão com facilidade e permaneci imóvel, escondido sob a sombra de uma árvore do quintal durante os minutos em que ela apoiou o rosto no parapeito. A dor em meu tórax se tornou quase insuportável. E as razões eram diversas: ela detinha uma beleza tão natural quanto o desabrochar de uma flor, mas havia uma certa densidade nas linhas de seus contornos suaves que me incomodava. A jovem exalava pureza, e eu era o total oposto disso. Se o que estava sentindo era realmente o Nödi, então eu estava fadado a ser o responsável por arruinar essa pureza. E não desejava fazer isso. Já havia batido minha cota de inocências devastadas, mas eu desejava estar com ela. Mais que tudo. Se eu pudesse apenas permanecer perto dela, se pudesse apenas continuar sentindo essa sensação de completude, se pudesse apenas ver seu sorriso, eu ficaria bem. E como se não bastasse, a jovem era o prêmio, o baú no fim da caçada ao tesouro de todos os vampiros. Como eu poderia deixar essa oportunidade passar? Em outras palavras, eu estava confuso para um grande cacete.

A melhor forma que encontrei de contornar a situação, foi respirar fundo, manter meu coração fechado e minha mente focada. Focada em matá-la.

Iria sugar o sangue dela dia-após-dia e assisti-la perecer lentamente, sem dor. Seria o mais perto da misericórdia que eu já chegara. Seria uma forma de poupá-la a viver uma vida atrelada a um maldito vampiro, ou uma vida longe da pessoa a quem fora ligada, que ela jamais encontraria. Afinal, quando fiz a Promessa de Sangue, jurei “jamais fazê-la sofrer e protegê-la”, certo?

No entanto, eu achei que não teria muito problema em, talvez, tirar algum proveito daquele corpo curvilíneo e tentador para caralho. É golpe baixo demais colocar uma silhueta deliciosa daquelas, aqueles peitos generosos e aquela bunda redonda, numa garota tão baixinha, adorável, encantadora, graciosa e… não, graciosa Alice não é nem de longe.

Eu só não contava que, quanto mais perto chegava e mais tempo passava com ela, menos focado eu ficaria. Era tão fácil conversar com Alice. Muitas vezes, quando dava por mim, as palavras já estavam saindo da minha boca. Não que agora seja diferente. É só ela olhar para mim com aqueles olhos de malaquitas que todos os muros que construí em mim desmoronam. Exatamente como da primeira vez em que Alice me encarou em seu quarto.

Céus, no instante em que ela sorriu para mim e não recuou, foi como se tivessem me posto no meio de uma densa floresta sem uma bússola. Eu fiquei perdido, desarmado. Mais do que nunca a achei ingênua e imprudente. No entanto, após algum tempo em sua companhia, percebi que ela não era nada disso, e sim terrivelmente bondosa e destemida demais para o seu próprio bem. Eu achava burrice. Até que passei a admirar essas qualidades.

Quando envolvi Alice nos braços depois que ela passou mal no banheiro, minha decisão final caiu como uma pesada redoma. Foda-se a máfia, foda-se o Nödi, foda-se a pretensão de me tornar o mais poderoso dos Cinco Grandes. Eu cuidaria dela para sempre. Nem que tivesse que trucidar metade do mundo ou morrer por isso. Só queria vê-la sorrindo.

E foi esse sorriso largo a última imagem que trespassou minhas memórias refletidas no espelho. Soltei uma risada nasal, meus ombros tensos se distendendo e minha mandíbula destravando ao reconhecer, enfim, que viveria o resto da minha vida — que antes eu pensava ser um martírio interminável e tedioso — unido a esse sorriso. E ao lado de Alice, tenho certeza de que tédio é uma coisa da qual não reclamarei mais.

Se eu teria assassinado os pais de Heloise do jeito desleixado que fiz, caso soubesse que Alice era minha parceira? Não, definitivamente não. Se eu tenho algum arrependimento? Não, nenhum. Todas as decisões que tomei me levaram a ela, até mesmo as más.

Retornei à clareira e, quando estacionei a moto, reparei que alguns parentes de Alice já haviam chegado. Heloise estava posicionando a banda contratada na lateral enquanto Gabriel e Igor verificavam as extensões e os geradores de energia dentro da cabana, e os responsáveis pelo buffet carregavam as bandejas para depositá-las na mesa.

A luz dourada do sol brilhava por entre as frestas das árvores, reforçando os contrastes da natureza com seus tons de verde e a beleza etérea do que certa noite fora o local de uma luta sangrenta. Logo seria o pôr do sol e a cerimônia. O que me lembrou: cadê a porra do juiz de paz?

Foi exatamente o que perguntei à Gabriel quando ele contornou o púlpito e desceu as escadas do chalé. Quer tentar adivinhar o que aconteceu? Dica: envolve um GPS e uma comunidade ao pé do Cristo Redentor.

Grunhi alto o bastante para que os convidados e os demais seres entre as folhagens achassem que pudesse ser um animal selvagem.

— Vou buscá-lo — declarei, caminhando a passos pesados em direção à Street Bob mais adiante.

— Zaph…

— De moto vai ser mais rápido.

Não dei brecha para Gabriel continuar. Não queria ouvir nada, então joguei meu peso na Harley, coloquei o capacete, abaixei a viseira, levantei o descanso com o calcanhar e lá fui eu resgatar a porra do juiz que se perdeu na porra da favela, porque pegou a porra da rota errada. La dracu!

*

Assim que cheguei ao local onde o cara disse que estava, estacionei a Street Bob próximo a um decadente boteco de esquina, sob os olhares dos moradores, e respirei fundo antes de tirar o capacete. Passei a mão pelos cabelos repicados, para me ocupar enquanto tentava não focar nas presas crescendo em minhas gengivas. Aguardei alguns minutos antes do filho da puta aparecer, saindo desse mesmo bar, com uma coxinha mordida na mão. Enchi os pulmões mais uma vez, retendo a vontade de pular na garganta dele. Eu podia ver coronhas de pistolas aparecendo nas barras das bermudas ou pontas de fuzis por sobre os ombros de homens. Se fossem dois ou três eu não me preocuparia, mas avistei pelo menos cinco num raio de 50 metros. Ter meu smoking sob medida furado no dia do meu casamento por causa da burrice de um juiz de paz não estava nos meus planos, então permaneci sentado e fingindo que tinha tudo sob controle.

— Desculpe — disse ele, ainda mastigando enquanto se aproximava do meio-fio. — Você deve ser o…

— Cala a porra da boca e sobe.

Não esperei para ver sua reação. Girei a chave e o motor roncou alto no meio da rua.

— Você tem um capacete extra?

Não respondi.

*

Meu celular vibrou insistentemente no bolso da calça social durante todo o trajeto e, quando resolvi atender, vi o número de Alice aparecer na tela. Atendi, levando o objeto ao ouvido enquanto pilotava a moto com uma das mãos, já que o capacete estava com o merdinha do juiz agarrado à minha cintura. Eu queria arrancar os braços dele e jogá-los na via expressa, para ver os carros passarem por cima.

— Zaph?

Logo reconheci a voz de Melissa e franzi o cenho. Ela é húngara e estava falando português, então estava perto de alguém que ela queria que escutasse.

— O que foi?

— Você está voltando, não está?

Do que essa mulher estava falando?

— É claro que estou voltando, caralho. É o meu casamento, porra.

Ao fundo, mesmo através do vento forte que fodia o meu cabelo, pude escutá-la se distanciar do telefone para dizer: “Viu, eu disse que ele estava vindo”. Então Melissa retornou para perto do microfone.

— Desculpa, é que a Alice… bem, ela meio que teve um ataque de pânico.

— Ela achou que eu ia abandonar ela no altar?!

— Não. Quando Alice soube onde você estava, achou que alguma coisa poderia ter acontecido no caminho.

Alice estava preocupada com a minha segurança? Ela deveria se preocupar com a segurança do filho da puta do juiz.

Mas eu consigo imaginar. Desde o pedido, quanto mais se aproximava nosso dia, mais agitada minha parceira ficava. Quase maníaca. Ela continua tomando os remédios, mas, como eu suspeitei, acredito que não estejam mais fazendo efeito. Alice só relaxava quando estávamos os dois na cobertura, isolados do mundo, isolados no nosso universo. A cabeça dela devia estar a mil por hora. E me imaginar sozinho, cercado por caras armados, não era o melhor dos cenários.

Suspirei.

— Estou chegando.

Quando de fato chegamos à clareira, antes que o juiz avoado desse o segundo passo em direção ao chalé, eu o interceptei, segurando seu bíceps. Não fui eu quem o contratara, e sim Heloise e Gabriel, mas era a porra do meu dinheiro que estava pagando. De pé e a centímetros dele, pude constatar que sou uns bons dois palmos mais alto que o desgraçado. O homem me olha de baixo, os olhos um tanto atônitos.

— Deixa eu te explicar uma coisa — digo, baixo, sem fazer muito alarde. — Aquela é a minha noiva, ela…

No que ele virou a cabeça para o lado e estudou Alice ao longe, de cima a baixo, um incêndio tomou conta de mim. Minhas presas latejaram.

— Ela é muito lind-…

Torci seu braço só o suficiente para criar uma luxação, o que o fez sibilar, e trouxe sua atenção de volta para nossa “conversa”.

— Olhe para mim. — O juiz o fez, as pupilas pequenas possivelmente devido à cor alaranjada de minhas íris. Abaixei o tom de voz ao aproximar meu rosto. — Aquela é a minha noiva, em breve minha esposa, e a razão pela qual você ainda está respirando. Hoje é o dia dos sonhos dela. Se eu perceber que você, ou qualquer outro aqui presente, moveu um único nervo que possa colocar este evento em perigo, vou quebrar a sua coluna. — Quando lembrei o motivo do próximo alerta, senti os músculos do meu pescoço e do abdome se tensionarem. Trinquei os dentes, permitindo que os caninos alongados aparecessem. — E se eu notar que você a olhou de forma maliciosa outra vez, vou arrancar os seus globos oculares e fazer você mastigá-los com terra. Entendeu?

O homem assentiu depressa e eu relanceei para o lado. Como todos estavam focados em sentar em seus lugares, aproveitei a distração. Fechei a mão e desferi um soco rápido, de baixo para cima, na lateral de seu tronco. O juiz arfou e se dobrou, tossindo de imediato. Apertei seu ombro, escondendo-o ao me vergar para frente, e avizinhei minha boca de sua orelha.

— Isso foi a sua sétima costela. — Pressionei meus dedos em sua carne até ver um primeiro vislumbre de dor em sua face. — Sugiro não desobedecer.

Então o soltei com calma e o ajudei a arrumar o terno simples, bem quando uma música instrumental começou a soar.

Eu não ajo dessa forma. Não dou avisos prévios. Mas, caralho, como dizem os brasileiros: Alice comeria meu fígado se eu matasse nosso juiz de paz aos 45 do segundo tempo.

Além do mais, prometi a mim mesmo que tentaria ser melhor. Chega de matanças sem sentido, por pura raiva indômita, já tive bastante delas, não preciso de mais. Minha fată ciudată não precisa disso.

A pequena banda não parecia estar incomodada por ter os sapatos sujos, nem pelos aparelhos terem de ficar na terra úmida, e ela parecia se encaixar estranhamente bem ali. Demorei a reconhecer a música, mas um sorriso torpe se infiltrou em meus lábios quando caiu a ficha, conforme eu caminhava clareira adentro. Era a versão instrumental da abertura de um dos animes que Alice me obrigou a assistir com ela. E do qual desisti no terceiro episódio. Como alguém aguenta 25 minutos ininterruptos de tanta gritaria e drama?

Todos se acomodaram da forma que podiam diante do chalé. As barras de vestidos e saias se arrastavam na lama, as laterais de mocassins e oxfords se arranhavam nos pedregulhos. Havia exatos 32 assentos para dezoito dos familiares vivos de Alice. Em catorze deles repousavam porta-retratos daqueles que não puderam comparecer, mas de alguma forma estavam presentes. Dos dois que viam-se desocupados na ponta da primeira fileira, um era destinado à Melissa e o outro à Julia.

Seria impossível não notar a forma como os olhares se elevavam e os cochichos se encerravam conforme eu passava pelo corredor salpicado de pétalas brancas. Passei a mão no cabelo bagunçado pelo vento ao me aproximar da escada. Esse caralho nunca fica no lugar, e no dia em que decidi tentar passar gel, precisei pilotar a moto sem capacete. Maravilhoso.

Gabriel e Igor conversavam com o juiz logo à frente, pouco antes da diminuta escada, e o homem se retesou assim que me aproximei.

— Onde está Alice? — questionei, ríspido, antes mesmo do meu sogro se virar para me encarar com olhos verdes quase tão afiados quanto os da filha.

Gabriel é talvez um palmo e meio mais baixo que eu, e um reles humano, mas é essa sua postura resoluta e calma diante de um cataclismo que me inspira certo grau de respeito.

Ele primeiro cumprimentou o juiz, que subiu os degraus com dificuldade. Um sorriso intentou se mostrar em meus lábios. Então o pai da minha noiva se virou para mim outra vez, conspícuo.

— Alice está com Melissa, Heloise e Lia.

— Ela está bem, Zaph — acrescentou Igor, e pude sentir segurança em seu tom.

O cacete que está, senão Melissa não teria ligado para mim. Tranquei os dentes.

Dei as costas para eles, pronto para revirar cada árvore e arbusto atrás delas. Porém, dois passos para a direita e quase trombei com a madrinha de Alice, Melissa.

— Onde ela está?

Cerrei os punhos.

— Alice está se recuperando. Está sentada num tronco caído da floresta, se hidratando. Ela começou a se acalmar quando sentiu uma comoção no peito, então deduzimos que foi o Nödi de vocês puxando. Bem, eu deduzi, Heloise achou que era um infarte.

Avancei um passo, a fim de ir até onde eu também sentia nosso laço me atraindo, como cordas de um ventríloquo. Minha visão só conseguia focar as árvores se adensando mata adentro, escondendo minha parceira de mim, mas uma mão fina em meu peito me impediu. Eu a olhei, depois encarei Melissa.

— Acho melhor você não ir. Dê um tempo para ela se reestabelecer. — Melissa me encara de volta, as sobrancelhas curvadas entre a súplica e a angústia. Ela retira a mão do meu peito, mas aponta para ele. — Esse… negócio que a gente tem é muito forte, e pode ser muita novidade para Alice assimilar. Ela está com Heloise agora.

Pior ainda.

— Na verdade, Alice me pediu para ficar sozinha. — A dita cuja veio caminhando da margem da floresta, espanando pequenos galhos e folhas que caíram em seus ombros, a face carrancuda. — Mas Lia ainda está lá. — Ótimo, eu não achava que era uma boa ideia ela ficar completamente sozinha na floresta ao anoitecer. Heloise balançou a cabeça ao me encarar, e guardei um suspiro cansado para mim mesmo. — Ainda não acredito que deixei você fazer isso com a minha filha.

— Foi escolha dela.

Quando voltamos para a casa dela no dia em que eu transformara Alice, Heloise não recebeu a notícia da melhor forma e perdi a paciência. Estava farto de ouvi-la, e estou pouco me fodendo para o que ela pensa de mim, mas não a deixaria gritar com Alice, então dei um basta. Ainda me enoja e me enfurece pensar em como essa mulher não enxerga o que faz com a própria filha. Isso deixou de ser amor há muito tempo.

— Eu sei, e isso é o que mais me dói. — Dói que sua filha não seja mais seu cachorrinho para ficar te seguindo? Ótimo. Ela para diante de mim, quase vinte centímetros mais baixa, mas cheia de uma fúria irrestrita. — Se tivesse sido você a manipulá-la como fez comigo, eu ainda conseguia compreender, mas não… E ainda tenho minhas dúvidas quanto a esse tal… — Heloise gesticula de forma displicente, o nariz repuxado — Nãrí.

Nödi — corrigimos eu e Melissa.

— Pessoal! — Lia surge do mesmo lugar que Heloise, acenando para nós. Sua face corada mostra um certo esbaforir e os cabelos loiros e lisos emolduram os arregalados olhos claros. — Ela já está vindo!

— Acho melhor você ir para o seu lugar. — De repente, Igor estava com uma das mãos em meu ombro e um pequeno sorriso. — E tenta dar um jeito nessa cara. Ela não vai querer te ver com essa expressão maníaca.

Eu estava com uma expressão maníaca? Só estava preocupado. Mas Igor tinha razão, se Alice me visse assim, ficaria tensa.

— Ei — chama ele outra vez. Igor, que é o mais alto dos três, talvez apenas dez centímetros mais baixo que eu, me oferece um sorriso amável que lembra o da irmã, porém mais suave e de uma forma inusitada. Não soube como processar a informação e quase me esquivei de seu toque. — Ela tá bem. De verdade. Conversei com ela agora há pouco, antes de Lia ir até lá. Alice sempre gostou de colocar os pés na lama.

Não entendi muito bem na hora, mas depois eu compreenderia. Então respirei fundo e anuí.

O juiz, um tanto cocho, se posicionou atrás do púlpito em frente à porta emoldurada por um arco de rosas brancas, e não desgrudei os olhos dele enquanto subia os degraus, ajeitando as abotoaduras no pulso do paletó justo. Vi o homem engolir em seco e esfregar a costela. Mantive meu mirar nele até me posicionar um pouco mais à frente na pequena varanda e me tornar para os convidados.

Respirei profundamente o ar puro e fresco. Eu iria me casar.

Abaixei o foco ao retirar do bolso frontal da calça o relicário de prata. Meu coração se desacelerou e uma calma fria o tomou, quando meus olhos viram o colar delicado repousando em minha mão. Toda vez que o vejo, é como se eu visualizasse o momento em que minha mãe o entregou para mim, pouco antes de falecer.

— Você nunca estará sozinho, minha criança da lua — dissera ela com a voz rouca, mas suave como uma pluma, deitada em sua cama. — Você vai encontrar alguém que caminhará ao seu lado de bom grado, dia após dia, tenho certeza. Mas, para encontrarmos esse alguém, primeiro precisamos nos encontrar. Seja paciente. Nada vem do nada.
Eu assentira, segurando as lágrimas e o relicário com força, sentado na banqueta ao lado da cabeceira enquanto a velava. Meu irmão havia sido convocado para a guerra, meu pai havia sido assassinado, Conry havia ido para a Hungria. Só restávamos nós dois, as estrelas e o fogo a crepitar na pequena lareira do apertado quarto de pau-a-pique e estuque.
— Eu te amo, mãe — sussurrei, como se a morte pudesse ouvir e decidir tomá-la de mim mais cedo.
— Eu também te amo, minha criança. — Ela trouxe sua mão até o meu rosto com certo esforço, e eu a segurei em minha bochecha. Suas mãos, que me ensinaram a moldar vasos de barro, sempre foram calosas, mas guardavam maciez e calor. Agora estavam muito frias, magras e fracas. As lágrimas molharam meus cílios. — Tente não beber sangues muito gordurosos, tudo bem?
Lembro de como meus olhos saltaram.
— Como você…?
Ela riu, mas sua risada se transformou em uma tosse carregada, e meu coração quase foi à boca.
— Vocês não conseguem esconder nada de mim, lembra?
Ela sabia. Sempre soubera. E não falara nada para ninguém. Seu filho mais velho tinha se tornado uma criatura do Outro Mundo, daquelas que os mais antigos diziam vagar pelas vielas à noite, sugando a vida dos que deixavam suas portas desprotegidas e assombrando os pesadelos das crianças malcomportadas. Daquelas que levavam milhares de pessoas a colocarem alho, água-benta, crucifixos, runas de proteção e até uma marca de sangue nos batentes de suas casas, que inspiravam tanto terror nas noites escuras, que martelavam pregos nas testas dos mortos e selavam os caixões com correntes de ferro. E ainda assim a mãe não falara nada. Ela sabia que eu fingia comer a sopa na mesa de jantar, sabia que eu me alimentava de sangue humano. E não dissera nada. Não pedira por socorro, não me expulsara de casa, não fora à igreja rezar, não chamara os vizinhos para colocarem uma estaca em meu peito, não implorara para que eu poupasse suas vidas…. Não. Ela apenas continuou sendo minha mãe.
Com um clique o medalhão se abriu, revelando sua foto, o sorriso de Mona Lisa numa feição muito mais afável e espirituosa. Então sussurrei, só para nós, em nosso idioma:
— Eu a encontrei, mãe.
Odeio isso.
Odeio cada parte disso. Odeio como um mundo que faz coisas tão maravilhosas pode ser tão cruel. Odeio meu passado. Odeio o fato de ter sido tão ingênuo, tão impotente, que me transformei no que sou hoje.
Não quero pensar neles, porque me sinto sufocado ao lembrar de todo o inferno que foram obrigados a passar. Mas estou fazendo o melhor que posso. Estou caminhando de queixo erguido, como meu pai me ensinou, e mantendo meu coração aberto, como minha mãe me pediu.
Mas meu peito ainda dói, como se dedos se cravassem nele lentamente, toda vez que vejo Matt e seu maldito sorriso em todas as superfícies, propagandas, notícias… Ele é parte da razão pela qual nunca tive um celular. Eu não queria ser surpreendido por seu jovem rosto de bruxo e sua vida mágica. Tentei ter um IPhone assim que fora lançado, para poder trabalhar, e na hora em que Matt surgiu na minha tela, eu arremessei o telefone na parede com tanta força que ele se estilhaçou. Depois disso, nunca mais.
Minha coluna enrijece toda vez que me lembro da primeira vez que segurei um revólver. Meus pelos se arrepiam quando ouço a voz rouca de Ştefan atrás da minha orelha, como um sopro fantasmagórico a me ensinar como torturar um vampiro iniciante que não pagou a dívida. Meu estômago embrulha toda vez que me lembro de Ştefan se deliciando de carnes frescas humanas com as próprias mãos. Meu pescoço queima toda vez que me lembro de como o ferro da minha coleira ficava apertado em volta dele, do quão fria era a cela, do quão áspero era o chão e as barras do ninho das bruxas Olhos Famintos. O ar escapa dos meus pulmões toda vez que vejo o sorriso de Arachn’y quando fecho meus olhos, como se ela o tivesse entalhado no interior das minhas pálpebras.
Eu odeio como tudo isso destruiu cada traço de bondade em mim.
Mesmo quando as lágrimas começam a arder na ponta do meu nariz e a embaçar minha visão, eu me lembro de todos eles gritando para mim que “cachorros vira-latas não choram”, “se você deixar cair uma única lágrima eu arranco seus lindos olhos, meu garoto”. Engulo cada uma delas, como se eles pudessem me ver e me alcançar em qualquer lugar, a qualquer hora. Porque podem. E vão, mais cedo ou mais tarde.
Quero que as pessoas sejam melhores porque sei que não posso ser. Quero dar esperança para Alice porque sei que ela pode ser ainda mais maravilhosa e fazer coisas incríveis. Quero transmitir essa força à ela. Quero fomentar sua chama. Quero vê-la ascender como o maior e mais brilhante astro que há num céu de puro negrume, para iluminar tudo ao redor e queimar toda essa loucura.
Quando a música mudou repentinamente, eu soube que Alice iria aparecer. Logo minha estrela, meu ponto de ordem em meio a todo esse caos, viria ao meu encontro. E assim que os acordes instrumentais começaram a tocar, senti que meu peito poderia explodir. Eu reconheceria Can’t help falling in love do Elvis, meu Elvis, de qualquer forma. E ela sabia disso.
Por isso que Alice não é apenas um astro para mim, ela é todo o universo, mesmo as partes mais obscuras dele. E também é por isso que sei que uma coisa utópica daquelas jamais irá acontecer. É impossível. Como eu mesmo lhe disse, a vida é a porra de um ciclo infinito. Então aprendi a lidar com essa sujeira sozinho e do jeito que pude.
Eles queriam um diabo? Tudo bem, então eu seria o diabo. Se os hipócritas de merda queriam se ajoelhar e rezar, sem problemas, eu daria a eles um bom motivo para fazerem isso. Os olhos vermelhos dos vampiros viriam a calhar. A única coisa boa nesta maldita raça.
Estou fazendo algo bom, certo? Me adaptei ao meio, estou usando minha nova natureza a meu favor e a favor dos outros. Estou apenas dando a eles o que pediram. Estou aumentando sua fé, aplicando a justiça que tanto imploram para receber. Não é minha culpa se eu corto o pau de um pedófilo e o faço comer enquanto arregaço seu cu com as mãos, é? Ou se enfio uma garrafa de vidro quebrada na traqueia de um bêbado abusador. E aos que não se enquadram em nenhuma categoria, eu simplesmente os ignoro. “Morda uma cobra e você será mordido, apenas mais forte e mais doloroso.” Ştefan costumava dizer isso… Pelo menos a máfia me ensinou a ser criativo.
Então ela surgiu, exatamente como imaginei. Linda, exalando pureza em seu vestido branco e afastando todos os meus demônios com sua luz. Seu vestido a fez se destacar em frente a tanto verde e marrom. Ele tem um tule leve por cima da saia cheia, os ramos de flores bordados na barra combinam com as que enfeitam o altar e o caminho de pétalas por onde ela entra, a cintura é alta e também há flores bordadas no decote mais perfeito do mundo. Ele permite que uma quantidade generosa de seus seios salte para cima. Seja lá o que a fez escolher esse vestido, obrigado.
Alice vinha até mim sozinha, sem mãe nem pai a flanqueando. Não era solitária, mas independente. Eu sustentei suas íris verdes, tão densas quanto a mata ao nosso redor, com as minhas, seu sorriso contraído, mas nitidamente à vontade. Contudo, quando Alice mordeu o lábio inferior, eu soube que havia algo. Ela suspendeu um pouco a saia do vestido e pude ver os tênis de cano alto cheios de lama.
Prendo uma risada de última hora, então ela sai um tanto esganiçada pelo nariz. Abaixo a cabeça, colocando dois dedos sobre os olhos, porque simplesmente não consigo impedir o riso. Ah, essa garota estranha…
O violino, o violoncelo e o teclado ecoavam pela clareira ao anoitecer. As luzes sobre nossas cabeças se acenderam como as próprias estrelas. Levantei a cabeça para ver minha futura esposa chegar ao meio do corredor de pétalas brancas. Não demorou muito para a música abrandar, junto aos nossos olhares, quando Alice atingiu o pé da escada.
Alguns meses antes estivemos em posições parecidas, mas era o casamento do irmão dela. Hoje era o nosso.
Meu coração esmurrava meu tórax, mas minhas mãos não vacilaram quando pegaram a sua. Tão macia e diminuta… Inclinei a cabeça para frente e suspendi seu dorso, deixando que meus lábios o encontrassem. Ao abaixá-lo, demorei para conseguir voltar a encarar seus olhos. Eles pareciam chamar meu nome de forma mansa, mas meu estômago decidiu se desfazer em bateres de asas de mariposas. Só fui entender o que causava essa sensação momentos depois. Alisei seus dedos com o polegar, para me acalmar e também porque não canso de sentir sua pele. É como se eu pudesse tatear o próprio Nödi.
Respirei, então, e recebi o baque de seus orbes verdes resplandecentes nos meus. O juiz pronunciou algumas mensagens rápidas, mas não prestei atenção nelas. Eu queria dizer o quão magnífica Alice estava, mas segurei minha vontade. Queria dizer o quão feliz eu estava, mas não disse. Queria dizer o quanto eu a amava, que essa palavra parece muito pequena para resumir o que sinto, o que ela me faz sentir, o que ela representa para mim… mas não o fiz. Não precisava. Cada lucilar amazonita em suas íris me informava que Alice compreendia.
— Eu, Zaph Petrescu, prometo honrá-la, respeitá-la e orgulhá-la até a última estrela se apagar. — Não era uma Promessa de Sangue, mas as palavras pareciam carregar o mesmo peso de uma, ou até mais. Parecia que eu estava selando nosso destino, decretando nosso futuro e, se era esse o caso, eu as proferiria como tal. Moldei toda a minha vontade em letras e apertei suas mãos. — Eu te farei feliz, enquanto houver felicidade no mundo. Eu a protegerei, mesmo que as sombras sejam tudo o que resta ao nosso redor. Eu te amarei, em todos os sentidos que possam existir, se assim você me permitir.
— Eu permito. — Sua voz carregada de emoção e certeza fez meu coração tropeçar. Foi a vez dela de retribuir o aperto nas mãos, e seu olhar não desgrudou do meu. Meus dedos pulsaram por causa do sangue preso e arderam pelo atrito de ossos. Alice ainda não está acostumada à sua nova força. — Eu, Alice de Souza Beiruth, prometo honrá-lo, respeitá-lo e orgulhá-lo. Eu o farei feliz, enquanto houver felicidade no mundo. Eu o protegerei, mesmo que as sombras sejam tudo o que resta ao nosso redor. Eu te amarei, em todos os sentidos que possam existir, se assim você me permitir.
— Eu permito. — Então decidi sussurrar a última parte, apenas para que ela ouvisse: — Pela lua e as estrelas.
Quase não consegui reprimir minha felicidade quando os lábios dela se partiram no sorriso mais esplendoroso que já vi. Canis Majoris teria inveja.
— E todas as infinitas possibilidades entre elas — sussurrou Alice de volta.
— Com o poder investido em mim — retomou o juiz, mas eu não ousei tirar os olhos de Alice… acho que nem mesmo conseguiria, se tentasse —, eu vos declaro marido e mulher.
Os familiares irromperam em aplausos e assobios, mas os ignoramos, pois era nítido para ambos que, o que queríamos e o que mais importava naquela instante, estava bem diante de nós. Mal me curvei para baixo e minha boca foi recepcionada pela de Alice.
Minha esposa me beijou de forma tenra, mas eu senti o gosto do desejo nas reentrâncias de seus lábios.
*
Eu e Alice não fizemos questão de tanta pompa, então, após trocarmos os votos e assinarmos nossos novos sobrenomes — e me assegurar de fitar seriamente o juiz, que estremeceu com o mirar fixo adiante, na hora em que ela se curvou para escrever no livro —, descemos a escada um por vez sob sons de palmas um tanto controversas, e Alice me fez posar para uma foto. O fotógrafo se ajoelhou mais à frente, a câmera no rosto, e eu circundei a cintura de Alice.
Nunca fui muito fã de fotografias. Se feito para o propósito certo, concordo que seja bonito e inspirador. Admito que até achei intrigante quando as primeiras delas surgiram, ainda em sépia e cinza, mas minha mulher as adora. Ela registra cada momento com seu celular e revela aqueles que julga os mais importantes, juntando-os em um quadro que logo não terá mais espaço para uma única polaroid.
Talvez eu não goste muito de fotografias porque através delas podemos ver aquilo que não percebemos, ou então relembramos o que não gostaríamos de esquecer. Elas capturam o passado e implicam no futuro. E não tem nada do que já vivi que eu queira recordar.
Se eu tivesse tantas fotos quanto Alice, eu as teria empilhado, embebido em querosene e jogado um fósforo, assim como de fato fiz com as revistas e CDs de Matt, e as roupas que costumava usar quando ainda estava na máfia. Eu me regozijei ao me reclinar no sofá da minha antiga casa, observando o fogo se erguer a pouco centímetros dos meus pés e assistindo as labaredas quentes dominarem o papel e os tecidos, tudo se desfazendo em cinzas. Fiquei lá até estar cercado pelo fogo que se alastrou — ainda consigo sentir o calor reconfortante que tocava minha pele —, até ter certeza de que tudo que um dia havia pertencido a um Zaph que não existia mais também havia se desfeito em uma pilha de cinzas.
Mas esse momento de hoje… é, talvez eu também queira um registro dele. Só um. Para implicar com essa mania de Alice, eu a surpreendi ao puxá-la para cima, pegá-la no colo com os dois braços e despejar um beijo demorado em sua testa. Sua risada reverberou pelo meu corpo, tomou posse do meu peito e ali ficou, aquecendo-o como o calor daquela fogueira.
A recoloquei no chão para caminharmos juntos até os convidados na parte de trás da cabana.
— Meu Deus, isso realmente aconteceu — disse Alice, a barra do vestido se arrastando na grama e na terra úmida.
— Realmente aconteceu.
— Você não fez isso só para ter acesso à herança do Drácula, né?
Seus olhos estreitados de soslaio e o sorriso torto me diziam que estava me provocando.
— Claro que sim — ironizo. — Agora tenho um saco do sangue mais adocicado e poderoso com o mesmo sobrenome que eu. É como ter minha própria adega portátil.
Ela bateu no meu ombro e, embora eu tenha sorrido porque adoro as reações dela às minhas brincadeiras… ai, doeu. Uma mão tão pequenina, mas pesada para porra. Antes eu mal sentia seus empurrões ou beliscões, mas agora a força do Primus se fazia presente, e não saber controlá-la podia vir a ser um problema. Terei de ensiná-la algumas coisas a esse respeito.
Quanto a consumir seu sangue… não acho que seja mais uma opção. Eu havia parado de fazê-lo quando realizei a Promessa, mas mesmo a quantidade que absorvi durante os dias anteriores já me fez sentir a diferença. Há força em cada aspecto que o compõe. O sabor é mais acentuado, uma mistura doce e eletrizante; e a textura se torna mais densa na língua, descendo pela garganta como uma carícia aveludada, refrescante e ácida, como morangos ao leite e uísque. Lembro de quando fui capaz de travar o avanço de Adam com apenas as mãos e o esforço dos ombros. Uma coisa dessas contra o Secundus nunca teria funcionado.
— Vou mandar fazer uma prateleira só para colocar você em destaque na minha adega.
— Você tem uma adega? — Alice franziu o cenho, abanou a mão e revirou os olhos, voltando a olhar para frente, já enfadada antes que eu pudesse responder. — Ah, claro que tem. Por um momento esqueci que estava falando com o Jeff Bezos dos vampiros.
Alice estava mais perto da verdade do que imaginava com essa piada, mas não vou contar isso a ela. Não agora. Até porque, assim que paramos no painel montado às costas do chalé, várias pessoas vieram ao seu encontro para cumprimentá-la. Sua feição se acendeu como os pisca-piscas que reluziam em marfim e tons de amarelo, e cobriam as mesas dos convidados. As lanternas aos pés das árvores foram acesas e formavam um círculo irregular em volta de todo o espaço. Verifiquei com satisfação que os funcionários do buffet, trajados de dólmãs e xapôs pretos impecáveis, formavam uma fileira atrás da longa mesa de jantar, as posturas eretas e prontos para servirem.
Difícil imaginar que a menos de dois meses esse lugar era um cemitério de vampiros.
Alguns de seus parentes também vieram falar comigo, mas, honestamente, eu preferiria que não o tivessem feito. Me afastei da comissão, deixando esse papel para Alice, Heloise e Gabriel, e dei uma volta pelo local, vendo aliviado que o que consertei havia se mantido firme. Porém, estanquei e icei o olhar para cima ao sentir um vento, os fios de luzes balançando com ele. Não havia uma única estrela no céu e tive um mau pressentimento.
Reposicionados, os músicos voltaram a tocar, parabenizando o “casal pela belíssima união” — acho que ele quis dizer o cachê que estavam recebendo da minha conta. Então, com a música ambiente no melhor estilo Alice-aleatório-de-ser, os seus convivas se dispersaram pelo local e a maioria foi para a mesa montar um prato de comida.
— Não acredito que vivi para ver este dia.
Melissa se aproximou pela minha lateral, com uma taça cumprida de algo translúcido, enquanto eu mesmo segurava um copo de uísque e observava a movimentação próximo às árvores.
Eu gosto disso. De observá-los. Me faz entender muita coisa sobre o comportamento de cada grupo social e como posso usar isso em meu benefício. Foi o que fiz com Heloise, quando ela ainda ia para a faculdade. Acompanhei seu crescimento, aprendi seus trejeitos, esperei o melhor momento e me aproximei. Algo que não fui capaz de fazer com Alice porque ela consegue se camuflar em qualquer ambiente, sem perder a própria veracidade. Após um período, o que era um traço que me intrigava e até me frustrava um pouco, passou a ser algo que eu amava nela. Achei que pessoas desse tipo não existiam mais, até encontrá-la.
— Para ser honesto — comecei, levando o copo à boca para tomar um gole —, eu também não acreditava.
— O quê? Que você encontraria seu par?
— Que você viveria para ver isso. Achei que morreria bem antes.
— Sou mais forte do que pensa, Zaph. Sempre fui.
— Agora eu sei. — Cerrei os dentes antes de continuar: — Obrigado por cuidar dela. E obrigado por aceitar me ajudar a protegê-la.
— Você não tem que me agradecer, ela é minha melhor amiga — disse Melissa, o que para um vampiro equivaleria a uma assertiva de amor incondicional. Não é muito diferente do que eu mesmo sinto, na verdade. Porque, embora exista a propulsão do Nödi, eu só o aceitei quando admiti que gostava de ter a amizade de Alice. Me perguntei como foi para ela ter ficado ao lado de minha esposa durante esses três anos em que eu não sabia de sua existência. E como ela ainda não tinha dado um tapa na cara de Heloise. — Mas vou aceitar seu agradecimento, mesmo assim, já que não sei quando isso vai acontecer de novo.
Um sorriso se esticou num canto dos meus lábios quando os toquei com a borda do copo.
Eu e Melissa nunca fomos melhores amigos. Nem sei se podemos dizer que fomos amigos. Tínhamos algo que poderia ser denominado como uma relação de benefício mútuo. Trepávamos, gozávamos e caçávamos sangue juntos. Começamos a parceria quando percebemos que nossas artimanhas tinham uma taxa de sucesso de 99,9%, e ocasionavam em ambos com o dobro de bolsas de sangue no estoque do que se estivéssemos sozinhos. Mas Melissa não gostava da forma como eu e Ştefan lidávamos com nossa “clientela”, então um dia ela se foi, deixando apenas um bilhete na cabeceira da cama. Mais um papel para eu atirar na fogueira e tacar o foda-se.
A noite abafada seguiu, refrescada esporadicamente pelo vento forte. Observei Alice conversar com seus familiares e rir como há muito não fazia. Ela não me puxou para o meio deles e eu a agradeci mentalmente por isso. Quando me convidei para ir ao churrasco que ocorrera na casa de sua tia, eu não estava lá por eles e nem pelo sangue deles.
Contudo, Alice fez questão de trazer a pequena e mais nova descendente do Drácula deitada no colo para me mostrar. Um sentimento estranho rodopiou em meu estômago. Ver Alice tão contente, segurando Clarisse nos braços, era como levar um soco no estômago e receber uma carícia ao mesmo tempo. Meus próprios braços formigavam, pesavam, queimavam. A vontade que eu tinha de tomá-la era tão forte quanto a vontade de correr daquela cena. Brincamos com a bebê, que emitia sons indistintos e infantes ao movimentar os bracinhos na direção da tia.
— Quer tentar? — perguntou Igor, chegando por trás de Alice.
Fiquei alguns segundos atônito, assimilando e degustando o fato de que ele havia me confiado seu bem mais precioso, mesmo sabendo o que eu sou e o que fiz para sua família. Ele exibia um meio sorriso e a postura relaxada, a mesma de Gabriel nas compleições de Heloise, e perceber que ele não o fazia por ignorância ou inocência me assustou um pouco, confesso. Assim como outra particularidade de sua irmã mais nova…
— É verdade, segura ela um pouquinho — reiterou Alice, já ajeitando Clarisse no colo para repassá-la.
Meu coração se perdeu entre suas batidas e meus pés abandonaram o equilíbrio, me forçando a dar um passo para trás.
— Eu não acho que…
— Tá tudo bem.
Igor pousou as mãos nos ombros da irmã e então Clarisse estava acomodada em meus braços.
Fiquei estático.
Eu estava segurando um bebê. Estava segurando a porra de um bebê. A sobrinha da minha esposa. A última herdeira do sangue de Viorel II.
Minha frequência cardíaca martelava na caixa torácica enquanto eu fitava Clarisse, perfeitamente encaixada em meu colo. Seu peso, seu vestidinho azul, sua pele morena como a da mãe, seus olhos grandes e cor de mel me analisando, sua temperatura morna… Não consegui mais suportar.
A devolvi para Igor com o máximo de velocidade e cuidado que conseguia, voltando a respirar, mas sem coragem de olhar nos olhos dos dois irmãos.
— Scuze — pedi, ao trespassá-los em direção à mesa de bebidas com passos pesados e largos, e tive uma breve impressão de empurrar o ombro de Igor.
Eu estava tonto. Não estava costumado com esse sentimento. Não queria ele. Não queria ele dentro de mim, não queria essa merda.
Parei diante da mesa redonda, enchi um copo com uísque e o virei em uma única golada. Minha vontade era, na realidade, de arremessar a garrafa longe e vê-la se estilhaçar, porque essa porra não adiantava de nada não importava quantos litros eu tomasse. Então aconteceu. Meu mau pressentimento se concretizou.
Trovões ressoaram pelas nuvens, a ventania sacolejando toalhas, flores, vestidos e pisca-piscas. As mulheres gritavam dramaticamente enquanto tentavam proteger os penteados e a maquiagem. Um pingo, dois pingos… A chuva caiu com fúria.
A terra tornou-se grudenta, as folhas das árvores viraram bicas, os arranjos de flores desmoronaram e se espalharam sobre os tampos das mesas, a comida boiava nos pratos e nas bandejas, as taças abandonadas se enxiam de água, que se misturavam com o champanhe e o vinho… Andei para a entrada da clareira, e de repente, a minúscula cabana recém-restaurada estava abarrotada de convidados molhados da cabeça aos pés, na urgência de se protegerem. Até mesmo os músicos buscaram abrigo sob a estreita varanda e salvaram seus instrumentos. E enquanto eu passava os olhos por cada um deles, espremidos, cochichando e mexendo em seus celulares ou nos cabelos úmidos, percebi que faltava alguém.
Heloise apareceu na porta, empurrando as pessoas, a feição transtornada, então parou no batente quando os músicos chegaram para o lado. Ela observava algo além dos meus ombros, para a mesma direção em que eu sentia a pressão do Nödi me puxar.
Girei nos calcanhares, as gotas da chuva atingindo minha cabeça e meus ombros, mas, mesmo escorrendo pelo meu rosto em abundância, elas não taparam a visão que tive da minha esposa. Parada no meio do cenário inundado, Alice tinha o rosto levantado para o céu escuro, os olhos fechados e um sorriso enorme estampado na boca. Ela estava com os braços esticados para os lados, recebendo de bom grado tudo o que o céu despejava.
Uma risada nasal me escapou e troquei o peso da perna. Passei a língua pelos lábios molhados, sentindo o sabor suave da chuva fresca, e a mão pelo cabelo, retirando a franja empapada dos meus olhos. Observei minha esposa rir, ainda de olhos fechados, e alisar o rosto, levando os dedos até os cabelos ensopados que adquiriram um tom ferrugem. A barra do vestido branco era lama pura, mas Alice poderia estar coberta de lama e continuaria sendo a coisa mais linda que já vi.
Tornei o corpo para a cabana e, em meio à tempestade que não parecia ter a intenção de ceder tão cedo, apontei para os músicos, que logo ficaram tensos, segurando seus amados instrumentos.
— Toquem algo bom — ordenei e voltei minha atenção para a Primus Alice, minha parceira e esposa, que agora estava com a língua para fora, provando as gotas.
Caminhei até onde ela estava e somente quando parei atrás dela, admirando seu rosto ensopado e reluzente, foi que notei estar sorrindo. Devagar, coloquei as mãos em sua cintura e Alice estremeceu, apartando os olhos de súbito. Ao longe, ouvi as notas do teclado e do violino começarem a soar pela clareira, entremeadas ao barulho estrondoso da torrente, como se elas próprias dançassem por entre as gotas.
Usei um pouco de força e rodei Alice para mim, fazendo com que a saia pesada de seu vestido embolasse em suas pernas. Ela riu e apoiou as mãos em meu peito. Seus olhos cintilaram como amazonitas abaixo de mim, e seu sorriso só pareceu refletir esse brilho. Guiei-a devagar, para um lado e para o outro.
— Tudo bem se eu pisar no seu pé? — perguntou ela.
— Vou colocar a culpa no vestido.
E eu achando que o sorriso dela não poderia ficar maior. Meu coração socou meu peito com uma força que tirou meu ar, e um calor brando se espalhou por todo o meu corpo.
Curvei-me até encostar minha testa na dela e fechei os olhos. La naiba, a chuva acertava minhas costas e nuca com a força de uma catarata, e o frio se esgueirava pelo terno grudado ao meu físico, mas eu me sentia ótimo. O mundo podia cair nesse momento e eu estaria pouco me fodendo.
Aos poucos, reconheci o ritmo melodioso do refrão de Follow You, do Imagine Dragons, mesclando-se às batidas da chuva ao nosso redor, e acabei por me deixar levar pela sensação de ter Alice comigo. Elogiei a banda mentalmente por terem escolhido um artista que ela adora. Tomei uma de suas mãos pequenas sobre meu peito e circundei sua cintura com um braço, trazendo-a mais para perto, mantendo-a colada a mim, seus seios quase totalmente espremidos contra meu tronco, como se não fosse aceitável que um único átomo nos separasse. De maneira infantil, esperava que ela pudesse sentir como meu coração batia forte, como queria que o tempo parasse, como queria possuí-la de todas as maneiras possíveis. Dumnezeleu, eu a foderia aqui mesmo. Meu pau endureceu devagar dentro da cueca justa e minhas presas pulsavam suavemente na gengiva, só de nos imaginar deitados na terra, debaixo dessa chuva, me enterrando fundo nela, a boceta dela quente me apertando e Alice me beijando com fome com aquela língua pequena, doce e habilidosa. Me chame de neandertal, de homem das cavernas, mas ter seu corpo nu fundido ao meu me é muito mais concreto do que qualquer aliança de metal.
— I’ll follow you way down, wherever you may go. I’ll follow you way down to your deepest low…
Só reparei que estava rumorejando a canção quando ouvi minha própria voz soar baixa no breve espaço entre nós. Um espaço que tinha tudo para ser frio devido ao vento, à intensa quantidade de água e à nossa própria temperatura, mas estava aquecido por inúmeros motivos.
Alice se aninhou ainda mais a mim, deitando a cabeça em meu peito e buscando meu calor, talvez, ou abrigo. Não importa.
“Eu te seguirei por todo percurso, seja lá onde você for. Eu te seguirei por todo percurso, até em seus momentos mais obscuros…” Sempre busquei Alice através dos séculos, através do Nödi que mal entrevia. Sempre a perscrutei em interações de outros, em sorrisos que desconhecia. Sempre estive atrás da sua pureza, do seu amor, e nem sabia. Agora que sei, por que parar de segui-la?
Eu estarei bem aqui, quando ela precisar.
A chuva nos deu uma trégua, como todas as chuvas de verão, mas não acabou por completo.
— Vou ser bem honesta. — Agora sua voz se fazia ouvir por entre os pingos. — Fiquei bem magoada com o jeito como você devolveu Clarisse pro meu irmão e virou as costas. Você sabe que ela é importante pra mim.
— Não dei as costas pra ela — decretei. Porque é a verdade. Nunca fui de mentir, mas, para ela, tudo será verdadeiro partindo de mim. — Eu dei as costas pro que ela significou naquele momento pra mim. Desculpe se não pareceu isso. Não foi minha intenção.
Na maioria das vezes, eu fico bem. Vejo famílias inteiras por aí, mulheres grávidas e bebês em carrinhos há uns 307 anos… mas ter Clarisse nos braços foi demais. Foi como segurar o que nunca terei.
— Bem, sempre podemos adotar.
Eu ri, ainda que cabisbaixo. Ao menos seu tom não parecia chateado.
— Você adotaria uma criança?
Logo bufei, pois já sabia a resposta. Olha para quem estava perguntando, é claro que adotaria. Alice adotaria um zoológico e um orfanato inteiros.
— Podemos adotar quantas você quiser! — Não disse? — Afinal, meu marido é rico.
Eu poderia provocar esse último atestamento, mas ao invés disso…
— Tudo bem então. Vamos adotar.
— Não agora, por favor.
Um sorriso largo rasgou meus lábios.
— Não, claro que não. Você ainda tem muito o que fazer antes.
— É, tipo começar uma faculdade.
— Sem pressa.
Despejei um beijo no topo de sua cabeça molhada. Eca, que gosto de creme pra cabelo. O que ela passou nisso? Raspei a língua nos dentes.
— Zaph, por que… — Ela suspirou, reformulando as palavras possivelmente, e me fez parar a dança quando ergueu o queixo para me fitar. Eu não estava preparado para o teor triste e aquoso de seus olhos. — Você é gentil comigo, carinhoso, respeitoso… abusado e safado? Sim, muito, mas sabe respeitar os limites. Pelo menos quando quer. Então por que não faz o mesmo com os outros?
Meu humor despencou.
— Porque os outros não merecem. Eu já te expliquei. Não vou respeitar quem não merece ser respeitado.
— Acredito que as pessoas mereçam uma chance, pelo menos.
Tanto o sorriso carinhoso de Alice quanto o pacato de Igor, ainda que de formas divergentes, voltaram à minha cabeça, e meu humor se suavizou como a garoa que agora descia.
— Sabe, essa foi a primeira característica sua que fez eu me apaixonar por você. — Ajeito algumas mechas que grudaram em suas têmporas, sua testa e seu queixo. — Sua capacidade de perdoar. Eu, no seu lugar, não me perdoaria. Pegaria uma estaca e enfiaria no meu coração na primeira oportunidade.
— As pessoas mudam. Mudamos toda hora, a todo tempo, desde que nascemos. Olha pra mim! — Parei de mexer em seu cabelo e abaixei o olhar para a minha pequena esposa. Ela franziu o cenho em resposta à minha feição nula. — Você não acredita nisso?
— Tenho muita dificuldade de acreditar.
— Mas você mesmo me disse que a vida é um ciclo.
Quase me doeu ver suas sobrancelhas enrugadas.
— Exato. Tudo que vai volta — assegurei. — As coisas realmente mudam, mas poucas pessoas percebem o círculo vicioso de mudanças. Pode levar décadas, séculos, milênios, mas as coisas se repetem. Elas voltam com outra cara, outro nome, outro contexto, mas a razão e as ações são as mesmas. Você não acha que daqui há algum tempo haverá outro Hitler? Outro Bin Laden? Outro… Desculpe, eu não queria te assustar.
Parei de falar quando percebi a pele de seu rosto vincada em diversos lugares. No entanto, Alice resfolegou e abaixou a face, a fisionomia mais amainada.
— Você não me assusta. O mundo me assusta — confessou ela com naturalidade, enquanto acariciava meu peito sobre a blusa social branca colada em minha pele.
O passear brando de seus dedos pequenos pelo tecido frio enviava uma onda de paz e outra de tesão.
Desde o início essa garota estranha nunca teve medo de mim, mesmo eu sendo o que sou. O que me lembrava como minha mãe me acolheu, mesmo sem eu pedir, sua força e seu riso presentes mesmo nos piores momentos. Sendo assim, encaixei minhas mãos em seu maxilar e em suas bochechas, e suspendi sua bela feição desolada pela emoção e encharcada pela chuva para mim. Seus olhos encontraram os meus, mas estou focado em sua boca. Tendi para frente e uni nossos lábios. Eles estavam macios como sempre, entretanto, extremamente molhados e, de olhos fechados, o chuviscar em nossas laterais se tornou mais nítido ao tato. Não fiz mais que isso. Apenas um toque, apenas uma emenda.
— Por favor, não tema o mundo — falei, baixinho, entre os nossos lábios. — Eu realmente acredito no que eu disse, presenciei muita merda igual, em diferentes panoramas. Mas elas não anulam as coisas boas que acontecem no entremeio, nos períodos de paz. E até mesmo durante elas. Eu disse que há crueldade no mundo, mas também disse que há coisas lindas nele, não foi?
— Você terá que me provar.
Meu sorrir esbarrou no seu.
— Tudo bem. Eu provo. — Verti mais um beijo rápido em seu nariz e me afastei. Deus, eu amo essas sardas. E, quando Alice sorri aérea como agora, só as torna mais adoráveis. — Que tal uma viagem? — Uma ideia me veio e icei as sobrancelhas — Ou melhor, um tour pela Europa? Então vou te dar inúmeras razões para acreditar. — Sua expressão devaneadora desapareceu sem nem mesmo piscar. O que havia em sua face agora é o retrato do assombro. — O que foi? Algo errado?
Eu disse alguma coisa ruim?
Eu continuo admirando sua valentia, mas não escondo que isso me preocupa. Muito. Eu consigo lidar com Ştefan e a máfia, pedi ajuda à Melissa para proteger Alice de inúmeros outros vampiros, mas o que de fato me gelava os ossos era a possibilidade de perdê-la para sua própria mente. Cacete, é diferente de tudo que já senti. Eu enfrentei diversas faces do medo, e não achava que poderia ter um que eu desconhecesse. Fazia meu estômago se retrair e todos os meus músculos retesarem. Às vezes, quando fitava as profundezas dos olhos da minha pequena, via um tom mais escuro de verde que enviava um tremor sutil pela minha coluna. Era uma sensação um tanto quanto atordoante, sedutora e horripilante. Porque uma voz no meu ouvido me dizia que eu sabia o motivo.
Seja o que for, a sombra em seus olhos sumiu com a mesma rapidez que surgiu, e um sorriso casto a substituiu.
— Nada. Obrigada.
— Não estou fazendo isso só por você. Estou cansado de ficar neste país.
Agora que a havia encontrado, não tinha motivos para ficar aqui. Alice mudou de expressão por segundos de novo, dessa vez claramente brava. Ela recuou o cotovelo, o punho fechado, e… PUTA QUE ME…
— Ai meu Deus, ai meu Deus! — Ouvia Alice exclamar enquanto eu me dobrava ao meio, as mãos na boca do estômago onde ela acertou o soco. A falta de ar me impossibilitava de responder ou de abrir os dentes trincados, e os músculos do meu abdome latejando me impediam de abrir mais que um olho. — Desculpa, eu ainda não tô acostumada!
— Você precisa… — gaguejei, a voz rouca e esganiçada — de treinamento… urgente.
Foquei na grama e na terra aos nossos pés para recuperar o fôlego, meus sapatos engraxados e a barra branca e florida do vestido dela puramente marrons.
— Ah é, eu sou mais forte que você agora.
Isso foi orgulho que ouvi em sua voz?
— Pensei que tivesse feito de propósito.
Suguei o ar pela boca, me recuperando, a dor esvanecendo. Isso devia ser karma.
— Você acha que eu te machucaria de propó-… se bem que você merece. É. Bem-feito.
— Filha da mãe.
— Sou mesmo.

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⏰ Última atualização: Apr 14, 2023 ⏰

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As Aventuras (Eróticas) de Alice e ZaphOnde histórias criam vida. Descubra agora