CONTO II - NÃO

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Quase em seguida, houve uma maldita falha na Matrix. Porque essas 24h foram tudo, menos normais.

— Se o meio campo não estivesse tão aberto, ele não teria passado. Não com tanta facilidade.

— O ataque é que tá uma merda. O centroavante estava com a bola praticamente no pé e não fez nada.

Nunca na minha vida eu achei que presenciaria o dia em que Gabriel de Souza Beiruth, investigador da Polícia Civil, debateria futebol com um vampiro secular, debochado e folgado, ambos sentados no sofá da minha casa. Meu Exu, em que encruzilhada minha vida se meteu?

Remexo na taça de sorvete, meus calcanhares balançando por cima do apoio da poltrona. Assumo que estou um pouco desgostosa por ter sido expulsa do meu lugar no sofá, para que um vampiro o ocupasse e conversasse com o meu pai. Meus olhos dardejam de um para outro, relaxados, ainda que de uma distância segura. "Segura".

O foco de Zaph muda, e recepciono o choque de seus orbes de braços fechados. Metaforicamente.

Ele ergue uma sobrancelha e eu estreito as pestanas.

Ele franze os supercílios e eu faço um bico.

Ele retorce um lado dos lábios, como se incrédulo, e eu ergo ambas as sobrancelhas em ratificação.

Ele deixa a feição relaxar, como se cético, e eu repuxo os lábios e o nariz em uma careta desdenhosa.

Seus lábios tiritam na tentativa de bloquear um sorriso, que só se alastra mais e mais. Pela pura altivez da vida, ou como se nossos demônios tivessem se unido para conspirar contra nós, meus lábios imitam os seus, e posso sentir uma gargalhada querendo eclodir de dentro de mim.

Meu pai, focado no jogo na televisão às minhas costas, está alheio a todo esse diálogo.

Eu não perdoei Zaph. Eu disse que tentaria, não que seria capaz. Meus pais podem ter quinhentos defeitos, mas eu jamais relevaria algum mal que os tenha acometido. Principalmente quando este mal está diante de mim. No entanto, também não posso negar o fato de que cada átomo do meu corpo e cada partícula da minha alma gosta da ideia de se unir a ele.

Algumas noites atrás, quando enfim decidi reabrir as janelas — até porque meu quarto estava ficando tão abafado quanto a sala de espera do inferno —, Zaph apareceu no parapeito, no limiar do dia com a noite, como de praxe.

— Tomara que um dia você role telhado abaixo e caia em cima das lanças do portão - murmurei, fingindo concentração no exercício de física aberto diante de mim sobre o vidro da escrivaninha.

Eu queria que o vampiro acreditasse que eu não estava nem um pouco eufórica por vê-lo ali, que eu ainda estava enraivecida, mas tenho certeza de que meu batucar da caneta na página me denunciou.

— Que cruel — caçoou Zaph.

Depois de semanas ignorando-o, o som grave e arrastado de sua voz pareceu algo terrível... para os meus hormônios.

Mas não deixei que isso me abobalhasse. Afinal, quem era ele para me chamar de cruel? E isso fez surgir um profundo vinco em minha testa.

— Você quer falar de crueldade? — Descanso a caneta no livro brusca e giro a cadeira para fitá-lo.

Todo o potencial humor que havia em seu semblante se atenuou. Sua boca se tornou uma linha reta e seus olhos se tornaram chumbo. Mas eu o sustentei. Parecia haver mais do que apenas o armário, a cama e a cômoda no espaço entre nós. Eu não suportava a ideia de ficar perto dele naquele momento, mas, com a mesma intensidade, desejava me juntar a ele o mais rápido possível.

As Aventuras (Eróticas) de Alice e ZaphOnde histórias criam vida. Descubra agora