Capítulo 1

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   Os gritos da discussão podiam ser escutados do meu quarto no segundo andar, eles quase nunca brigavam mas quando acontecia as vozes ecoavam por todos os cômodos. O motivo dessa vez era eu ou melhor o que todo mundo estava comentando. Ser filho do gerente do banco com uma ex-modelo significava que muitas pessoas na pequena cidade nos conhecia. O que nesse caso, não era uma boa coisa.
   A vergonha de encarar os outros era tão grande que mal saíam de casa. Meu pai praticamente fazia seus horários e resolveu adotar o método home office, nem eu tive coragem de voltar para o colégio e eles não me obrigaram. As mensagens não paravam de se acumular na tela do celular e a minha mensagem de voz com certeza já havia sido decorada. Meus pais nunca falaram sobre o assunto. Nunca. Estavam preocupados demais com suas próprias vidas. O tempo que passamos confinados no mesmo metro quadrado os levou a conclusão de que seria mais fácil pra eles se eu trocasse de colégio, ou talvez de cidade.
   Eu aceitei de imediato, foi um alívio eles terem proposto isso, mas não imaginava que eles pretendiam se livrar de mim e sair em uma viagem de férias pelo mundo. Meus pais se despediram poucos dias depois de encontrarem um apartamento para eu morar, ele ficava a algumas estações do novo colégio. Um colégio misto diferente do que eu estudava. Eles disseram que me amavam e que não  precisaria me preocupar pois mandariam dinheiro todo mês e o apartamento estava alugado por dois anos, ou seja, não voltariam tão cedo. Não ao menos até estar formado no ensino médio.
   Era apenas o começo do ano letivo, eu teria que recuperar a matéria perdida na nova escola depois. A farda que usaria estava dobrada sobre a cômoda. Os sapatos, os materiais, tudo havia sido providenciado antes deles partirem. Me perguntei por quanto tempo eles planejaram nisso enquanto ficaram presos em casa. De qualquer forma ficar sozinho não era tão ruim, mas mensagens continuavam a chegar uma após a outra. Se eu tivesse ficado como teria sido as coisas? Sacudi a cabeça afastando aquele pensamento, eu só precisava dormir agora. Me joguei na cama e fechei os olhos, desarrumaria a mala amanhã.
   Os raios de sol já haviam invadido o quarto quando eu acordei. O relógio mostrava que se não me apressasse perderia o trem. Desci as escadas ainda sonolento e corri o mais rápido que pude. As portas estavam se fechando quando eu pulei para dentro. Por sorte a tempo. Teria que comprar um despertador ainda naquele dia. O atraso me ajudou a descobrir onde tinha uma livraria e para a minha sorte era a caminho da escola, o único problema é que isso me fez perceber que desci na estação errada. Sabia que estava perto mas não lembrava qual a direção.
   Nunca imaginei que me perderia em meu primeiro dia de aula. Enquanto decidia mentalmente qual caminho seguir virei esbarrando o ombro em alguém o que me fez cambalear para trás. Mordi o interior da bochecha para conter um gemido abafado.
   — Desculpa – pedi, sentindo o ombro doer.
   O garoto que parecia ter a mesma idade que eu, porém mais alto, não demonstrou sentir dor alguma. Com aquele tamanho nem eu sentiria, tinha postura de um atleta. Seus braços estavam perfeitamente marcados pelo camisa que... que era igual a minha. Estudávamos na mesma escola. Não importa o quão alto e descolado ele fosse, era tão distraído quanto eu porque também desceu na estação errada. Enfim, se eu o seguisse chegaria a escola sem problemas e conseguiria assistir a primeira aula. De vez enquanto ele dava uma olhada por cima do ombro e se não estudássemos no mesmo lugar, eu também ficaria desconfortável com alguém me seguindo.
   Em menos de trinta minutos de caminhada chegamos à escola e ele se juntou a um grupo de garotos que acenou em sua direção. Antes de qualquer coisa, eu precisava descobrir onde ficava a minha sala e principalmente fazer o possível para não me destacar. Passei por um dos corredores e uma garota de cabelos mel dourado e olhos bem marcados com delineador sorriu para mim. Foi meio estranho. Me deixou um pouco envergonhado mas não quis parecer arrogante então sorri de volta. Ela estava cercada por seu grupinho de amigas e um garoto, provavelmente namorado ou afim de alguma delas. De todo modo não era da minha conta. Deveria ter uma lista com os nomes em algum lugar e eu procurava por ela.
   Perto dos armários achei um quadro com alguns avisos e a lista que eu queria. Afroxei o nó da gravata e segui por outro corredor. Para que tantos corredores? É uma escola ou um labirinto? Repetia para mim mesmo o número da sala. Me perder a caminho da escola não era algo tão vergonhoso mas me perder na escola seria humilhante. Dou mais cinco passos à esquerda e lá está ela. Olho para cima por mais tempo do que o necessário só para ter certeza de que é o mesmo número que passei os últimos minutos decorando. E sim, é.
   Com um suspiro tento relaxar e criar coragem para entrar. A pior sensação de um primeiro dia de aula é todos aqueles olhares voltados para você. Coloco a cabeça para dentro espiando os alunos sentados e alguns em pé conversando com seus grupos. O era aquilo? Um grupo de delinquentes e um grupo de nerd na mesma turma? Eu não tinha nada contra mais eles pareciam encrenca, acho que talvez tentaria me aproximar do grupo de nerds. Mas talvez.
   Senti um braço me envolver por cima dos ombros seguido de um sussurro perto do meu ouvido, que fez um arrepio percorrer o meu corpo. De repente, não estava mais sozinho.
   — O que disse? – perguntei, me recuperando do susto.
   — Perguntei o que você está fazendo do lado de fora? – diz ele, me soltando. — Quer falar com alguém?
   — Na-não, na verdade eu acabei de me transferi. É o meu primeiro dia – tentei não gaguejar muito para não demonstrar insegurança.
   — Você está nessa turma novato? – ele abriu um sorriso de lado contagiante o que quase me fez sorrir também.
   — É Nickolas – corrigi e de alguma forma ele pareceu um pouco envergonhado por isso. — Mas sim, eu estou nessa turma.
   Eu definitivamente sorri. E percebi quando ele relaxou os ombros. Sabia que o modo como eu falei tinha o deixado sem jeito mas não imaginei que havia ficado tenso.
   — Que bom Nickolas, significa que você passará o resto do ano estudando comigo e esse bando de esquisitos – concluiu apontando para a turma.
   Ele é do segundo ano, assim como eu. Pensei. Minhas inseguranças começaram a desaparecer diante da possibilidade de ter ele como amigo.
   — Nick. Pode ser só Nick – sugeri. Ele concordou com a cabeça e voltou a me envolver com seu braço, me conduzindo para dentro da sala.
   Tínhamos quase a mesma altura mas me sentia tão minúsculo perto dele. Bom, possivelmente a personalidade dele contribuía muito para isso. Não recebemos nenhum olhar dos outros, eles estavam bem entretidos em seus assuntos.
   — Senta aí – indicou a cadeira à sua frente.
   Coloquei a mochila sobre a mesa e sentei, ficando de costas para ele que me cutucou para que eu virasse.
   — Aliás, meu nome é Mattheo – fala ele, e me sinto estúpido por não ter perguntado antes. — Todos me chamam apenas de Theo. Me chame assim também.
   — Está bem – concordo distraído encarando os outros alunos.
   — Ah, eles? – perguntou notando para onde eu olhava. — Somos uma turma unida se quer saber. Temos gostos diferentes mas todos se respeitam. Está vendo o grandão ali com o pé na cadeira?
   O garoto estava meio curvado sentado em cima da mesa um dos pés pisando em uma cadeira enquanto balançava o outro. Eu balancei a cabeça esperando ele acrescentar mais alguma informação, mas ao invés disso ele gritou.
   — Tyler – chamou Theo e eu gelei.
   Mas o que você está fazendo!? Não chama ele aqui não!! Com um aceno de mão Theo convidou ele para se juntar a nós e o garoto se levantou caminhando em nossa direção. Ah! Ótimo, lá vem ele. Olhei para o outro lado. Sentamos nas carteiras da lateral da sala que ficava perto das janelas, isso me deu uma distração enquanto o garoto se aproximava.
   Theo cutucou o meu braço me obrigando a encarar Tyler. Ele tinha algumas mechas loiras no cabelo e um piercing no lóbulo da orelha. E estava parado de frente para nós.
   — O que é? – perguntou para Theo mas seus olhos estavam cravados em mim.
   — Esse é o Nick – disse apontando com o queixo para mim. — , e ele meio que tava curioso sobre vocês.
   A primeira coisa que descobri a respeito de Theo era que ele tinha uma personalidade esmagadora e um sorriso contagiante. A segunda coisa era que tinha o hábito de falar mais do que deveria. E eu queria me enterrar naquele momento.
   Tyler aproximou o rosto do meu e me encarou em uma proximidade absurda que meu cérebro não conseguia achar normal para dois garotos em público. Conseguia sentir a sua respiração a centímetros da minha boca.
   — Você tem olhos bonitos – disse ele por fim.
   Não consegui evitar piscar algumas vezes, incrédulo. Minha alma saiu do meu corpo para nada. Tyler recuou tirando um pirulito do bolso que desembrulhou e enfiou na boca. Ele não tinha uma aura tão assustadora quanto eu pensava.
   Eu tinha os olhos da cor azul-acinzentado o que entrava um pouco em contraste com o meu cabelo preto-azulado.
   — Obrigado – falei e senti um calor tomar conta do meu rosto. Não era hora de ficar corado logo ali.
   — Que fofo – deixou escapar Tyler com uma sobrancelha arqueada.
   Theo o fitou com uma expressão que não consegui interpretar mas depois voltou a olhar para mim. Parecia que eu estava vivendo uma cena de mangá yaoi. Mas que droga eu estava pensando? Talvez devesse parar de ler por um tempo essas histórias.
   — Ele é o representante da turma – diz Theo.
   Meu queixo caiu.
   — Apesar da aparência ele não é o encrenqueiro que muitos pensam. Porém é melhor você ficar longe dele – comenta ele, como se tivesse se arrependido de ter nos apresentado.
   — Tsc – desdenhou Tyler. — Eu não vou morder ele, a menos que ele peça.
   Seu sorriso era provocativo e o pirulito na boca lhe dava um certo charme. Theo o encarou visivelmente irritado.
   Eu deveria avisá-los para parar de colaborarem com a minha mente em criar um enredo yaoi. O sinal tocou e o clima entre eles se desfez.
   — Depois eu te conto sobre a turma – diz Tyler se afastando.
   Mattheo agarrou o meu braço e me puxou para perto dele.
   — Você só pode falar com ele na minha presença. Não o encontre a sós, entendeu? – acrescentou ele e assenti.
   Virei para frente quando o professor entrou e passei as aulas seguintes assim. Não ousaria olhar para trás e nem queria, podia sentir os olhos de Theo em mim. Minha cabeça tava uma confusão e então lembrei e repeti mentalmente. Não posso deixar aquilo acontecer de novo. Não posso.
   Coloquei a mochila nas costas quando as aulas terminaram e saí. Theo correu atrás de mim e disse que me acompanharia até parte do caminho para estação. Eu estava realmente grato por isso. Ele sorria com uma facilidade impressionante. O mesmo sorriso de lado daquela manhã.
   Bati a porta ao entrar e tirei os sapatos. O chão estava tão frio. Joguei a mochila sobre a cama ao lado da gravata. Em meu bolso o celular vibrou, li o nome escrito na tela e desliguei.
   Na sacada do apartamento fechei os olhos e a imagem da minha antiga sala de aula veio na mente. O que fui fazer? Por que isso foi acontecer com a gente? Nem uma dessas perguntas era tão importante quanto a que eu vinha me fazendo a dias. Sentei na cadeira da escrivaninha e tirei um caderno sem pautas com fecho magnético, eu precisava escrever.

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