Capítulo 2

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   Se não fosse pelo despertador me acordar a tempo para ir à escola, eu certamente chegaria atrasado. Passei a madrugada lendo os novos mangás que comprei ontem a caminho de casa. Com a mão na maçaneta da porta encarei a gaveta da escrivaninha. Corri até lá e tirei o caderninho de capa verde musgo e enfiei na mochila.
   Quando entrei no trem percebi que desde que eu acordasse cedo passaria a viagem toda até a escola sentado. Havia poucas pessoas nesse horário. O maior desafio foi me manter com os olhos abertos e não passar a estação que deveria descer. Depois de duas chamadas as portas se abriram e eu saí.
   Mattheo me viu chegando e acenou me esperando Perto de onde ficava os armários dos alunos da escola.
   — Fico feliz que tenha conseguido chegar aqui sem se perder – diz ele brincando.
   Sorri envergonhado. Eu meio que acabei contando para Theo quando ele se ofereceu para me acompanhar até metade do caminho.
   — Obrigado pela sua ajuda ontem – digo me aproximando.
   — Não precisa me agradecer por isso – responde sem jeito passando a mão pelo cabelo. — Você apenas devia ter me dito que era de outra cidade quando nos conhecemos e eu teria te explicado o caminho até a estação.
   E foi literalmente o que ele fez. Theo correu atrás de mim quando deixei a sala na tarde anterior me acompanhou até onde podia ir e com alguns gestos de mão ele me mostrou por onde eu deveria continuar seguindo.
   No começo eu fiquei um pouco receoso com as atitudes dele mas talvez fosse só influencia dos mangás yaoi. Ele disse que passaria em uma das máquinas de bebidas espalhadas pela escola para comprar um refrigerante. Quem é que toma uma bebida dessas de manhã cedo? Minha mente automaticamente respondeu por mim. Mattheo. Ele tinha alguns gostos estranhos e de certo modo me sentia tentado a conhecer um pouco mais sobre ele.
   A sala de aula parecia tão calma sem ele. Eu sentei com os pés para fora da mesa, ficando de frente para a turma. Com uma visão mais clara das portas laterais. A sala tinha duas, uma na direção da mesa do professor e outra na direção das mesas que ficavam ao fundo. Uma garota de cabelos ondulados parou na porta dos fundos e depois de examinar a sala decidiu entrar. Ela caminhou para onde eu estava e sentou no lugar de Mattheo. A garota era muito bonita e provavelmente da mesma altura que eu. Ela sentou de lado e cruzou as pernas. Será que Mattheo a conhecia?
   Voltei a olhar para a porta quando ela virou o rosto para mim e me dei conta de que fiquei a encarando por tempo demais.
   — É você!! – exclamou ela me olhando.
   Eu continuei a observando em silêncio sem entender nada. Era o meu segundo dia e eu tinha certeza de que nunca havia encontrado com aquela garota. Mas então ela sorriu e eu lembrei. Só vi o delineado perfeito dela uma vez e as cores que escolhia realçavam os seus olhos verdes. Ela era a garota cercada por seu grupinho quando cheguei na escola.
   De repente algo veio à minha mente, havia um garoto em seu grupo e se ela estava ali, significava que ele só podia ser quem eu estava pensando.
   — Lauren!? O que você está fazendo aqui? – perguntou Theo surpreso.
   Nem percebi quando ele entrou e parou do lado da minha mesa. Theo apertava a garrafinha em sua mão e não sei dizer se foi impressão minha mas ele parecia nitidamente mais nervoso na frente dela.
   — É sério isso? Agora preciso de um motivo específico para querer ver o meu melhor amigo? – indaga mais confusa do que irritada ficando de pé.
   Ele fica calado e encara o chão. Pela reação dele poderia dizer que Theo deve ter sentido uma pontada no peito com aquela frase.
   — Vim trazer uns doces que fizemos no clube de culinária – acrescentou ela lhe entregando a sacolinha.
   — Ah, valeu – Theo agradece evitando contato visual e fica com as bochechas meio coradas.
   A garota apoiou as mãos sobre a mesa dele e se inclinou para frente, me encarando. Inconscientemente meu corpo recua e minhas costas batem na minha própria mesa.
   — Você é novato, certo?
   — Nickolas. O nome dele é Nickolas – responde Theo por mim. — Mas, sim, ele é novo na escola.
   Eu sorri com a resposta dele. Devo ter deixado uma péssima impressão, mas fiquei feliz pelo fato de Theo ainda se lembrar da nossa conversa. Não fazia muito tempo mas qualquer um já teria esquecido.
   — Prazer Nickolas. Eu sou a Lauren. Espero que possamos nos ver com mais frequência agora que temos um amigo em comum – acrescenta dando uma piscadinha e eu esbocei um sorriso tenso.
   Ela passou por Theo beijando a bochecha dele e saiu. Ele sentou colocando um dos braços dobrados embaixo da cabeça e ficou com o olhar distante brincando com a sacolinha.
   — Você está bem? – pergunto.
   Era um pergunta bem idiota porque claramente ele não estava. Queria poder animá-lo. Olhei para a sacolinha de doces ao lado da garrafinha de refrigerante, pensativo.
   — Estou com a sensação de que você é uma formiguinha – digo e ele dá uma risada autêntica.
   — Você quer um? – oferece esticando o braço.
   Apesar de não ter costume de comer doces pego um. Os biscoitos não pareciam ruins, tinham até uma forma apetitosa, mas eu não conseguia colocá-los para dentro.
   — Você não gosta? – pergunta e percebo que ainda estou olhando fixamente para o cookie.
   — Eu sou meio fraco para doces, faz mal para o meu estômago – confesso, por fim.
   — Entendo. Eu como a sua parte então – diz puxando a minha mão até a sua boca.
   Os lábios dele eram tão macios. Sinto o meu corpo todo se arrepiar e torço para que ele não tenha percebido. Ele solta a minha mão de repente e passa a língua nos lábios limpando os farelos. Seus olhos não estão mais olhando na minha direção, ele está encarando um ponto atrás de mim.
   — Também quero que Nick me alimente – diz a voz vinda do fundo.
   Tyler passa os dedos no meu cabelo colocando e afasta uma mecha dos meus olhos. Theo lhe dá um olhar ameaçador e ele simplesmente o ignora.
   — O professor chegou, vá para o seu lugar – diz apontando para o outro lado da sala.
   Meu cérebro não acompanhava o ritmo das aulas. Alguma coisa de muito errada estava acontecendo com o meu coração. Já vi várias cenas que poderiam muito bem ter saído de um mangá bl, porém eu sempre era apenas o expectador. No entanto, toda vez que estou perto de Theo me sinto arrastado para uma cena dessas, como protagonista.
   Tirei o diário da mochila quando entrei no trem, pulei as páginas que escrevi sobre o que aconteceu na minha antiga escola e comecei a escrever.
   Um mês havia passado desde que comecei a frequentar as aulas. Amarrei o cadarço dos tênis e deixei os mangás espalhados na cama, eu os colocaria na prateleira quando voltasse no fim da tarde. O caminho para a escola não era mais um problema para mim na volta às vezes passava em frente a livraria para ver os novos lançamentos de mangás. Eu nunca os levava para a escola e nem contava a ninguém sobre isso.
   Tyler fazia eu fantasiar as histórias que eu lia todas as manhãs quando resolvia provocar Theo. Algo no comportamento deles fazia estranhamente o meu peito palpitar. Talvez fosse apenas o fato de não estar acostumado a ser o centro das atenções. E tinha Lauren também que aparecia na nossa turma sempre que conseguia. A presença dela me deixava um pouco constrangido. Ela era uma garota legal, mas sinto como se estivesse ferindo os sentimentos de Theo com a nossa proximidade. Eu não queria magoá-lo e sabia que a minha relação com a Lauren fazia isso.
   Naquele fim de tarde depois da aula deixamos Lauren na casa dela e Theo insistiu para me acompanhar até a minha. E eu cedi. Era difícil dizer não para aquele sorriso de lado irresistível dele.
   Descemos do trem e caminhamos até a rua onde ficava o meu apartamento. Minhas mãos estavam suando. Theo me deixava nervoso de um jeito que não tinha nem mesmo eu conseguia entender. Eu me tornei um bom ouvinte para ele que comentava sobre o bairro e as casas que passávamos. Não precisava dizer nada, podia ficar escutando ele falar sobre qualquer assunto. Qualquer história. História? Droga! Minha cama estava completamente ocupada por mangás yaoi. Acabei levantando tarde e não coloquei de volta na prateleira. Theo não podia entrar lá.
   — É pequeno – digo parando.
   — O quê? – ele vira para mim franzindo a testa.
   Ele parece não entender então tento ser mais claro.
   — O apartamento, ele é pequeno.
   — Tudo bem, eu não entro.
   Por um minuto o alívio toma conta do meu corpo. Mas aí me dou conta. Ele disse que não entraria e não que iria embora.
   — É aqui? – pergunta olhando para cima.
   Não me viro e nem preciso, as casas ao redor me dão a certeza que fiz a besteira de parar em frente ao meu prédio.
   — Sim, é – confirmo.
   — Só me diz, qual desses é o seu apartamento? – perguntou apontando para o prédio.
   — É aquele – mostro o que está com a luz da varanda acesa.
   — Número?
   — 15 – respondo. Minha respiração para. — Espera, número?
   Não há uma resposta, pois Theo não está mais ali, ele correu escadas acima me deixando sozinho. Com certeza já imaginava que arrumaria alguma desculpa para ele não subir.
   Quando chego até a porta do meu apartamento, Theo está sentado no chão arfando. Não devia, mas achei isso tão atraente. Balanço a cabeça afastando esse pensamento não posso me distrair com ele. Primeiro passo, abrir a porta, pegar os mangás sobre a cama e esconder sem que ele perceba.
   Meu plano quase perfeito já era. Mas o que podia esperar de um garoto que me largou sozinho e subiu três andares correndo.
   Ao abrir a porta Theo pulou para dentro com uma rapidez impressionante, ele não estava tão cansado quanto eu pensava. Eu corri na sua frente mas não consegui evitar que ele me alcançasse.
   — Não imaginei que você tivesse esse tipo de revista em casa – diz ele tentando pegá-las.
   — Não é o que você está pensando – definitivamente não era.
   Me esforço para me manter longe de alguém mais alto do que eu.
   — Me deixe ver – insiste, mas o cansaço o vence. — Tá bem, desisto.
   Respirei aliviado, baixando a guarda. Fui ingênuo em acreditar nas suas palavras. Com um movimento rápido ele avançou na minha direção me derrubando no chão. Caímos sentados e eu estava entre as suas pernas.
   Ele está segurando os mangás imóvel, sem olhar para mim. Sua franja esconde os seus olhos ficando impossível adivinhar a expressão que está fazendo. O silêncio perdura e meu corpo todo se enrijece.
   — Eu vou comprar alguma coisa para a gente comer – disse se levantando.
   A porta se fechou e eu não tive coragem de vê-lo sair. Ele foi bem sútil em arrumar uma desculpa para ir embora. Theo não voltaria.
   Fiquei ali por alguns minutos pensando na reação dele. Olhei para o mangá de Sasaki to Miyano e suspirei. A capa não era muito sugestiva mas era fácil de se chegar a uma conclusão. Coloquei-os de volta na prateleira e ouvi o barulho de chaves. A porta se abriu e revelou Theo. Não percebi quando ele roubou a chave da porta e me deixou trancado na minha própria casa.
   — Você voltou? – perguntei atônito.
   — Eu disse que ia comprar alguma coisa para gente comer – falou, como se a resposta fosse óbvia.
   — Obrigado.
   Minha voz soou tão baixa que pensei que ele não tivesse escutado.
   — Pelo o que? Faz tanto tempo assim que você não come? – brincou ele e eu ri.
   Tudo estava normal. Ele levou a sacola para a cozinha que ficava a dez passos do quarto. Era realmente um apartamento pequeno. Um quarto, uma cozinha, um banheiro. Ah, e a varanda.
   — Macarrão instantâneo? – questionei.
   — Não seja tão exigente – retrucou.
   Nós sentamos no tapete branco felpudo, enquanto comíamos assistindo a um filme de zumbis que Theo escolheu. Ele não pergunta nada e não parece nenhum um pouco desconfortável com o que aconteceu. Quando o filme acaba ele confere as horas e diz que precisa ir. Eu o acompanho até a porta.
   — Pensei que você iria me evitar depois de hoje – murmuro para Theo, que solta uma risada debochada.
   — Você vai precisar de muito mais do que isso para se livrar de mim – diz ele. — Até amanhã.
   — Até.
   Tranco aporta encostando a cabeça nela. Mas que droga!! Deixei o meu corpo desabar no chão. Theo foi embora e não expliquei para ele o motivo de eu ter me tornado um fundashi.

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