É impossível situar claramente as origens geográficas do Hermeticismo Filosófico, no entanto, de Alexandria a Roma, passando pelo Norte de África e Hispânia, as suas doutrinas não conheceram fronteiras.
Hesitando entre as soluções dos estóicos e as concepções acroamáticas da Academia Platônica, o Hermeticismo Filosófico confundir-se-ia, em certos momentos, com a história da gnose dualista, em cujos escritos são adotadas fórmulas apontando à regeneração do homem e da natureza, expostas no Poimandres e noutros tratados do Corpus Hermeticum.
Colocando a enfâse no cultivo da intuição, tal doutrina foi posta ao serviço de um modo de vida religioso. Com efeito, os tratados herméticos surgiram no seio de “comunidades herméticas”, em resultado de um ensinamento oral, no decurso do qual certas fórmulas didáticas, comentadas à luz de concepções gregas, egípcias e judaicas, resultaram numa cosmovisão sintética inovadora.
Não se revela fácil caracterizar o Corpus Hermeticum. Os seus tratados tratam das relações entre Deus, o cosmos e o homem, com relevância para os seguintes temas centrais: a origem divina do homem, a sua queda na matéria e o seu eventual regresso ao contato com o Pai, mediante o trânsito pelas esferas (CH I); o conhecimento do cosmos que conduz ao conhecimento de Deus (CH III); o Nous, ou visão intuitiva que desvela a coerência entre as diferentes coisas, enquanto dom e mercê divina (CH IV); Deus, apesar da sua invisibilidade, é suscetível de ser conhecido pelas suas obras (CH V); a ignorância como o maior dos males (CH VII); a morte entendida como uma mera transição, ou mudança (CH VIII); a aceitação da unidade que subjaz a tudo como condição para o conhecimento de Deus (CH XI); a necessidade do renascimento (CH XIII); o autoconhecimento e a ascese como via de acesso ao conhecimento de Deus (CH I); a matéria enquanto obstáculo à reintegração na fonte divina (CH I).
Com efeito, não é unívoco o teor dos Tratados Herméticos e do Asclepius, porquanto contêm evidentes elementos gnósticos e hebraicos (discussões sobre a alma, um paralelismo com o Gênesis, o Nous correspondendo ao tão característico Pneuma dos gnósticos, etc.), além de contributos egípcios, inspirados em hinos religiosos.
Apesar de tudo, o Hermeticismo distinguir-se-á das doutrinas gnósticas pela sua escatologia otimista e, designadamente, pela recusa de considerar o demiurgo a origem do mal. De resto, o próprio Hermetismo tentará escapar das posições dualistas, cerrando fileiras com Porfírio, Jâmblico, Heraiskos, Damáscio e outros discípulos de Plotino. Face ao Cristianismo, o Hermeticismo preservará a crença na Astrologia e na Sympatheia que liga as coisas e entes entre si. Além disso, ideias como a de um Deus único, da beleza do mundo, da bondade essencial do homem, da ascese e da oração como meios para a descoberta e união com Deus, aproximá-los-ão, originando conversões como as de Arnóbio e Firmino Materno, por exemplo.
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De forma geral, considera-se o Pseudo-Zózimo de Panópolis o testemunho mais significativo do Hermeticismo durante o séc. III, não obstante a sua atitude eclética na origem de uma profunda transformação doutrinal. À medida que se assiste à dissolução do Hermeticismo Filosófico, o Cristianismo assimilar-lhe-á a espiritualidade, colocando Hermes entre os seus profetas e precursores, a ombrear com os Magos e as Sibilas, aliás, motivo por que o seu prestígio perdurou.
Entre os Padres da Igreja encontram-se referências a Hermes Trismegisto e ao Asclepius em Lactâncio, Santo Agostinho e Clemente de Alexandria. Estobeu não havia tido acesso ao Corpus Hermeticum sob a forma como atualmente o conhecemos. Foi, sem embargo, vago e fragmentário o conhecimento acerca do Hermeticismo na Europa, durante a Idade Média. Entretanto, o Asclepius garantiu a continuidade da Tradição Hermética antes da descoberta do Corpus Hermeticum.
As escolas de tradutores de Toledo e Sevilha tiveram um papel não negligenciável no processo em apreço. O denominado “Renascimento” do séc. XII andou de mãos dadas com o interesse pelo Hermeticismo. Evidenciam-no autores como Teodorico de Chartres, Alberto Magno, Bernardo Silvestre, Alain de Lille, Vicente de Beauvais, Guilherme d’Auvergne, Tomás Bradwardine, Roger Bacon, Bernardo de Treviso e Hugo de São Victor. O mesmo se podendo afirmar da literatura dos ciclos arturianos.
Alberto Magno conhecera o Asclepius (Liber XXIV Philosophum Asclepius — sobre a natureza de Deus), bem como alguns fragmentos de escritos herméticos, tal como haviam sido transmitidos por Lactâncio e Cirilo. No De Voluptate (cap I), redigido em 1457, Marsilio Ficino (1433–1499) dá mostras de se encontrar familiarizado com Hermes Trismegisto, quando cita com admiração, porventura por influência de Lactâncio, o epílogo lírico do Asclepius latino.
Porém, o primeiro a referir ao Corpus Hermeticum, próximo a como o conhecemos hoje, foi Miguel Psellos (1020–1078), platônico bizantino e preceptor do Imperador Miguel Ducas, o qual utilizaria os escritos herméticos e órficos para explicar as Sagradas Escrituras. Mas foi só por volta de 1460, na Macedônia, que o manuscrito grego do Corpus Hermeticum, na sua forma atual, foi descoberto por Leonardo da Pistóia, adquirido por Cosme de Médici e traduzido para o latim por Marsilio Ficino, publicando-o sob o título de Mercurii Trismegisti Pimander. Sua difusão, no entanto, só ocorreu a partir da imprensa de Treviso, em 1471.
Assim se explica que, no ano 1488, Giovanni di Maestro Stephano haja gravado nas lajes da Catedral de Siena a efígie de Hermes Trismegisto, ladeado por Moisés e as Sibilas.
De resto, do advento do Renascimento até inícios do século XVIII, as correntes esotéricas ocidentais jamais se afirmaram como “contra-cultura” ou “contra-tradição” face ao poder religioso instituído, integrando ainda a história geral do Cristianismo e veiculando valores da cultura cristã. Só ulteriormente esta havia de ser adversada por filósofos e críticos, responsáveis pela redução das correntes esotéricas modernas a heresias marginais, ou a superstições mais ou menos condenáveis.
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Hermeticismo Cristão: A Relação Oculta entre a Igreja e o Oculto
SpiritualUma pequena compilação de textos sobre Hermeticismo, sua História e relação com a Igreja Católica