2012

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Atsumu Miya

É um milagre que as pessoas que usam o transporte público não caiam e morram por excesso de germes no inverno. Nos últimos dez minutos, fui vítima de tosses e espirros alheios, e, se a mulher à minha frente jogar caspa em cima de mim mais uma vez, talvez eu derrube nela o restante do café morno que não posso mais beber por estar cheio de pedaços de couro cabeludo.

Estou tão cansado que seria capaz de dormir aqui mesmo, no balanço do andar de cima deste ônibus lotado. Ainda bem que minha folga de Natal já começou, porque acho que meu corpo e meu cérebro não aguentariam nem mais um turno na recepção daquele hotel horroroso. O balcão pode até estar enfeitado com guirlandas e belas luzes para os hóspedes, mas, nos bastidores, é um verdadeiro inferno. Meus olhos vivem pesados, mesmo quando eu deveria estar acordado. Amanhã, assim que chegar à nostálgica intimidade da casa dos meus pais, meu plano é hibernar até o ano que vem. O mundo parece ficar tranquilo, em câmera lenta, quando troco Tokyo por um interlúdio da serena vida interiorana do quarto da minha infância, em Hyogo, mesmo que nem todas as lembranças dessa época sejam boas. Até as famílias mais unidas passam por tragédias, e acho justo dizer que a nossa veio cedo e foi drástica. Mas não vou ficar pensando nisso, porque o Natal é para ser um tempo de esperança, amor e, acima de tudo neste momento, sonecas. Sonecas intercaladas com competições de comilança com meu irmão gêmeo, Osamu, e seu namorado,Suna, além de um monte de filmes natalinos bregas. Porque é impossível se cansar de ver um infeliz parado no frio segurando cartazes que silenciosamente declaram à esposa do melhor amigo que seu coração despedaçado sempre a amará. Se bem que... isso é romântico? Não sei. Quero dizer, meio que é, de um jeito horrível, mas o sujeito também é o pior amigo do mundo.

Já desisti de me preocupar com os germes aqui, porque com certeza já ingeri o
suficiente para morrer, se for o caso, então apoio a cabeça na janela embaçada e observo o centro comercial passar como brilho dos pisca-piscas de Natal e vitrines iluminadas e abarrotadas que vendem de tudo, de jaquetas de couro a lembrancinhas bregas de Tokyo. Mal passa das quatro da tarde, mas já anoitece; acho que quase não houve claridade hoje.

Meu reflexo diz que talvez fosse melhor tirar a auréola cintilante horrorosa que a vaca da minha gerente me obrigou a usar, porque pareço um aspirante a Anjo Gabriel em uma peça natalina de escola primária, mas não consigo me dar ao trabalho. Ninguém neste ônibus se importa; não o homem encasacado e úmido ao meu lado ocupando bem mais que sua metade do assento enquanto cochila sobre o jornal de ontem, nem os estudantes gritando uns com os outros nos bancos no fundo e, com certeza, não a moça da caspa na minha frente, com seus brincos de flocos de neve. Sua escolha de bijuteria me parece irônica; se eu fosse mais babaca, talvez a cutucasse para dizer que ela está chamando atenção para a nevasca que causa cada vez que balança a cabeça. Porém não sou babaca; ou talvez seja só no silêncio da minha própria mente. Todo mundo é assim, não é?

Jesus Cristo, em quantos pontos este ônibus vai parar? Ainda faltam alguns quilômetros até onde moro e já está mais apertado aqui dentro que carreta de gado em dia de feira pecuária.
Ande logo, penso. Rápido. Quero ir para casa. Embora a minha casa seja um lugar deprimente agora que Oikawa, que divide o apartamento comigo, foi passar uns dias com os pais. Só mais um dia antes de eu ir também, lembro a mim mesmo.

O ônibus estremece e para no fim da rua. Observo enquanto a multidão lá embaixo se acotovela para sair enquanto é empurrada pelos que querem entrar. É como se achassem que estamos participando de uma competição para ver quantas pessoas cabem em um espaço apertado.

Há um cara acomodado em um dos bancos do ponto. Este com certeza não é o ônibus dele, porque está mergulhado em sua leitura. Ele me chamou a atenção porque parece ignorar o empurra-empurra que acontece bem na sua frente, como um desses efeitos especiais bonitos de filmes em que alguém fica completamente imóvel enquanto o mundo gira um pouco fora de foco, ao seu redor, como em um caleidoscópio.

Não consigo ver seu rosto, só o topo de seu cabelo preto, com um corte meio comprido, formando cachos, imagino, conforme cresce. Ele está agasalhado com um sobretudo de lã azul-marinho e um cachecol que parece ter sido tricotado especialmente para ele. É um detalhe destoante e inesperado em comparação ao restante das suas roupas estilosas — calça jeans skinny escura e botas — e com a maneira compenetrada com que lê o livro. Aperto os olhos, tentando baixar a cabeça para ver o título, limpando a janela embaçada com a manga do casaco para enxergar melhor.

Não sei se é o movimento do meu braço pelo vidro ou o brilho dos brincos da mulher da caspa que chamam a atenção de sua visão periférica, mas ele ergue a cabeça e pisca algumas vezes enquanto foca na minha janela. Em mim.

Nós nos encaramos, e não consigo desviar o olhar. Sinto meus lábios se moverem, como se eu fosse dizer alguma coisa, só Deus sabe o quê, e, de repente, do nada, preciso sair deste ônibus. Sou assolado pela necessidade urgente de ir lá fora, de ir até ele. Mas não vou. Não movo um músculo, porque sei que não existe possibilidade de eu conseguir passar pelo homem encasacado ao meu lado e abrir caminho por entre a multidão antes de o ônibus começar a andar. Então tomo a rápida decisão de ficar onde estou e tentar comunicar a ele, usando apenas a ânsia desesperada e intensa no meu olhar, que deveria subir aqui.

Ele não é nenhum galã nem tem aquela beleza clássica, mas há um quê desgrenhado e estiloso e um charme sério, modesto, que me atrai. Daqui, não consigo ver bem a cor de seus olhos. Pretos, acho, ou talvez castanhos? E vejo dois sinais em cima de sua sobrancelha, isso deu o charme.

E veja bem. Pode até parecer delírio da minha parte, mas tenho certeza de que vi a mesma eletricidade passar por ele; como se um relâmpago invisível tivesse, inexplicavelmente, nos unido. Reconhecimento; seus olhos arregalados exibiram uma surpresa nítida. Ele parece me encarar duas vezes, incrédulo, o tipo de coisa que se faz quando você encontra por coincidência seu melhor amigo dos velhos tempos, a quem não vê há séculos, e não acredita que aquilo esteja mesmo acontecendo.
É um olhar que diz Olá e Ah, meu Deus, é você e Que bom te ver, tudo ao mesmo tempo.

Seus olhos seguem na direção da pequena fila que ainda espera para embarcar e, depois, voltam-se para mim; quase consigo ouvir os pensamentos passando por sua mente. Ele está se perguntando se seria loucura entrar no ônibus, no que diria se não estivéssemos separados pelo vidro e pela multidão, se acabaria se sentindo idiota ao subir dois degraus da escada por vez para chegar até mim.

Não, tento transmitir. Não, você não se sentiria idiota. Eu não deixaria. Ande logo, entre na porcaria do ônibus! Ele está me encarando, e, então, um sorriso lento se forma em sua boca larga, como se não conseguisse controlar. E sorrio de volta, quase eufórico. Também não consigo evitar.
Por favor, entre no ônibus. Ele se move, tomando uma decisão repentina, fechando o livro e enfiando-o na mochila entre os tornozelos. Está andando agora; prendo a respiração, pressiono a palma da mão contra a janela fria, encorajando-o a correr mesmo enquanto escuto o horrível chiado das portas se fechando e sinto o sacolejar do freio de mão sendo solto.

Não! Não! Ah, meu Deus, não ouse sair deste ponto! É Natal! Quero gritar mesmo enquanto o ônibus se enfia no trânsito e aumenta a velocidade. Lá fora, ele fica parado na rua, ofegante, observando eu me afastar. Vejo a derrota afastar o brilho de seu olhar, e, por ser Natal e por ter acabado de me apaixonar perdidamente por um estranho em um ponto de ônibus, jogo um beijo triste para ele e apoio a testa no vidro, observando-o até sumir de vista.

Então me dou conta. Merda. Por que não me inspirei no infeliz do filme e escrevi alguma coisa para lhe mostrar? Eu podia ter feito isso. Podia até ter escrito o número do meu celular na janela úmida. Podia ter aberto uma fresta e gritado meu nome e endereço ou alguma coisa assim. Há um monte de coisas que eu podia e devia ter feito; porém, na hora, nada me ocorreu, porque parecia impossível desgrudar meus olhos dele.

Para os espectadores, deve ter parecido um filme mudo de sessenta segundos digno de um Oscar. De agora em diante, se alguém me perguntar se já me apaixonei à primeira vista, a resposta será que sim, por um glorioso minuto em 21 de dezembro de 2012.

Um dia em dezembro ; Sakuatsu Onde histórias criam vida. Descubra agora