Décimo primeiro dia

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Areia. Sinto como se a vida fosse areia dentro de uma ampulheta. A areia escorre lentamente, assim como a vida deixa os lábios e as mãos de um corpo. Como a cor some das pontas dos dedos e como a palidez da pele indica a morte precoce que segue e vigia dia após dia, abraçando-nos. Estou morta, e isso as pessoas não veem. O vidro de perfume que mal uso, ou as roupas bonitas que ficam empoeirando no guarda roupas. O sorriso mecânico que dança sobre os lábios e as frases decoradas que não precisam que haja alguém presente ali para que elas saírem. Recentemente iniciei o tratamento contra tudo isso. Já fazem 5 meses e as vozes sumiram, assim como a ansiedade. Mas a dor ainda está aqui. O desejo da morte, o prazer em ver o sangue escorrer, o menosprezo pela minha existência e a antipatia pelos meus sentimentos. Me indicaram trabalho para sentir bem, e estou trabalhando. Indicaram igreja, porque isso era falta de Deus, e estou indo na igreja. Me indicaram remédios, tratamentos, chás, atividades físicas, esforço e força de vontade. Dei tudo de mim, e não é bom o bastante para ninguém, nem para este que vos escreve. Perguntei diversas vezes hoje: "Será que tudo o que eu sou é apenas dor?" E levei esse questionamento diante minha volta para casa. "Será que todos esses anos, o que me define é apenas uma dor de uma aceitação de alguma coisa que eu nem sequer lembro nesse oceano que eu sou?" Sei que ninguém tem essa resposta. Mas eu tenho a minha. Sim. Tudo que eu sou é apenas dor. Foi a dor que me forjou, foi a dor que me criou, foi a incompreensão que me fez assim. Não a dos outros, mas a minha própria. Mas então, mesmo sabendo desses detalhes, ainda tenho aquele vazio que nada preenche. O medo que nada cura. A tristeza que ninguém conhece.Temo que nem quem vos escreve, entende sobre o quanto estou sofrendo por algo que nem compreendo. Certo momento, durante uma das sessões de terapia, o terapeuta questionou-me sobre meus cortes, e lhe respondi: "É a forma de mostrar ao mundo como tá aqui dentro." E isso fez-me perceber que ninguém se importa com a dor do outro, se ela não for física, palpável, visível. Todo sofrimento, toda a dor, toda a carga de anos e anos que venho carregando, somente eu sei o quanto dói. Ninguém além de mim sabe, e provavelmente nunca saberá. Mesmo mediante essas situações, ainda sou protagonista dessa história, e ainda sou capaz de trazer comigo mais dor, ou então largar. Mas se eu largar isso, o quê eu serei?

S(C)em em umOnde histórias criam vida. Descubra agora