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         Em meus sonhos, eu corria numa floresta de coníferas às pressas, em meio ao extenso tapete de neve, como se tentasse fugir de algo... Ou alguém. O peso do frio cortante era de se assombrar e, por mais que eu avançasse, nunca chegava a lugar algum, porque, em alguma parte de mim, eu sabia que se conseguisse pegar a estrada algo de ruim aconteceria. Abri meus olhos de uma vez, despertando do curto cochilo. Eu sempre tinha esses pesadelos terríveis; em alguns eu sendo trancafiada num lugar escuro sozinha, noutros morria afogada. Era bizarro..., mas, felizmente, estava protegida. Jamais me esqueceria da sensação desesperadora de acordar naquela cama alguns meses antes sem saber para onde ir ou o que pensar. Felizmente, ele estava ali para mim; Howard Fletcher, meu precioso marido. Era estranho que não houvesse fotos de casamento em nossa cômoda, não? Ele disse que nunca fui muito adoradora de fotografias — o que não era mentira — e perdermos a caixa com elas na mudança para esse lugar quando minha mãe morreu e implorei que nos mudássemos. Tudo bem. Ter ele comigo superava algumas imagens; Fletcher importava mais que pedaços de papel. Me remexi na cama, virando-me de frente para ele. Adorava vê-lo adormecido, a serenidade em seu olhar, o jeito que ficava em paz quando estávamos juntos.

Ontem à noite esteve trabalhando até tarde em seu escritório, conversando pelo walkie-talkie baixinho com os fazendeiros e amigos da cidade. Eu cheguei a pensar se ele estava tendo um caso, mas Fletcher — era mais corriqueiro chamá-lo pelo segundo nome que pelo primeiro — quase nunca me deixava sozinha. Ele fazia de tudo para estarmos juntos à cada passo e momento do dia. Às vezes era entediante não ter nada para fazer, mas ele dava um jeito de conseguir-me trazer livros novos em suas rápidas idas à cidade e eu aprendi a fazer crochê, o que ocupava minha mente. Nós cozinhávamos juntos, bebíamos cerveja, conversávamos por horas enquanto ele me contava apaixonadamente como nos conhecemos — num barzinho — e como me achou a garota mais deslumbrante entre todas as demais. Segundo ele, dançamos a noite inteira, ele pediu o número da minha casa e me chamou para um passeio no parque. Era uma linda história de amor, totalmente clichê. E ele vinha agindo como um homem apaixonado em todo esse tempo, Nós quase nunca discutíamos ou ficávamos de cara fechada um para o outro... Tive muita sorte de encontrá-lo.

Sai da cama para o chão devagar, tomando cuidado para não o acordar. Ele acordaria com fome, e eu queria ter preparado todo o café-da-manhã sozinha para variar. Howard sempre me mimava com comida na cama ou fazendo umas tarefas domésticas. Estava tão empenhado em me impressionar com seus dotes caseiros que eu ria toda vez que o via se curvando com uma vassoura em mãos ou tendo que ficar corcunda para pegar o lixo com a pá. Nossa vida podia não ser recheada de luxo e riquezas, mas tínhamos muita comida e muito carinho; bastava... Ele me fez acreditar que sim. Conversar com ele em todos esses meses ocasionou em eu vendo o mundo com olhos diferentes... Eu não fazia ideia de como ou quem era antes, mas estava contente em ter uma vida com ele. Se pudesse voltar no passado, referia toda nossa história de amor para acabar naquele lugar. Era só uma pena que eu não tivesse nem pistas de lembranças de como éramos antes... Daria tudo para poder recuperá-las.

Ajeitei o vestido ao me por dentro dos chinelos. Fletcher amava me ver naquelas roupas, então sempre arrumava peças floridas e bonitas para mim. Ele disse que eu usei um daqueles em todos os nossos encontros do passado, que o deixaram apaixonado pelo estilo. E, por alguma razão, não gostava muito de quando eu prendia o cabelo, contudo, tive que puxá-los a um rabo-de-cavalo firme. Me sentia melhor com eles naquela posição. Amarrei o penteado em uma fita de pano colorida com um laço. O dia estava belo do lado de fora, o lago em breve teria uma temperatura boa para nadar após o inverno rigoroso. E pensando naquilo... Eu gostaria de me lembrar o que fizemos, eu e meu marido, no ano anterior durante o Natal e festas comemorativas. Howard disse que fomos uma viagem muito bonita para uma cidadezinha linda e glamourosa chamada Jhun'Nipper Hills, mas, quando vasculhei em minha mente qualquer recordação... Nada. Não havia nada. Eu tentava diariamente buscar exercícios para a mente que me entretece, tentando decorar e memorizar coisas, treinando o funcionamento de neurônios. Algo me dizia que qualquer brincadeira estimulando minha mente era bem-vindo.

Ultraviolência: FragmentosOnde histórias criam vida. Descubra agora