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          Entrei em casa trinta minutos depois de ter saído e tudo que pude ver foi a imagem de Howard Fletcher roendo suas unhas no sofá da sala enquanto olhava fixamente para a porta. Ele gelou assim que me viu. Pelo menos não saiu atrás de mim e soube me dar o espaço do qual eu precisava para respirar. Enfim uma atitude sensata...

— Eu terminei o jantar... — Ele buscou sua redenção ao não perguntar onde estive ou o que estive fazendo. Era estranho que não o fizesse, contando suas manias de controladorzinho fajuto. — E fiz o suco também... Podemos comer se já não me odiar tanto.

— Eu não odeio você. — Repousei minhas mãos na cintura. — Só não quero que me esconda as coisas; sejam elas boas ou ruins, preciso que me conte tudo que souber do meu passado, independente do que pense sobre como eu posso me sentir. — Essa seria uma nova regra para nosso relacionamento. Se Howard não a seguisse, estaria na corda-bamba.

E ele sabia que nosso vaso perfeito de amor começou a trincar dos lados.

— Juro que não te escondi mais nada. — Fletcher ficou na minha frente, tentado a me tocar. — Juro que não tem nada que eu não tenha te contado, com exceção da faculdade, que agora você já sabe. E é tudo, Harriet. Eu juro. Juro pela minha vida.

— Não precisa jurar. — Sua palavra bastava, embora não fosse de muita garantia. Suspirante, eu segurei as mãos dele. — Vamos comer e esquecer disso. Eu não estou no clima para brigas.

— Muito menos eu. — Ele apertou meus ombros e os massageou da sala de estar para a de jantar, onde a mesa estava posta e as panelas tampadas. — Não se mexa. Vou servir minha mulher como bem merece. Você precisa comer para ter energia. Quer de tudo um pouco? — fiz que sim.

Ele pôs comida na exata quantidade que meu estômago suportava. Howard, apesar de tudo, me conhecia melhor que eu mesma àquela altura da vida. Esteve comigo nos últimos anos, afinal. Eu não me lembrava, mas a perca de memória não apagava nossa história juntos. Esquecendo meu surto de mais cedo, permiti que minhas desconfianças fossem varridas para debaixo do tapete enquanto eu me policiava para tornar a noite mais agradável. Tivemos uma longa conversa sobre o clima e ele me fez rir com duas piadas bobas, mas intelectualmente saborosas de se ouvir. Não eram do tipo de humor dele, eram do meu. Pensar que Fletcher se esforçava para decorar piadas que me agradavam retirou o peso da culpa de seus ombros. Viver com esse homem era como escalar uma montanha-russa com o carrinho nos trilhos; hora nas alturas e horas despencando sem parar.

***


Nesse sonho, eu estava fantasiada com um vestido azul e estranho, cabelos presos para o figurino e nenhuma maquiagem. Uma festa a fantasia de outro século? O que significava o ambiente escuro, corredores sinistros e luzes precárias. Um hospital abandonado? Eu quase tinha a sensação de que se tratava de algo semelhante. Flashes passaram e na imagem seguinte lá eu estava presa a uma cadeira, com uma versão de fios soltos e aparência pálida de Howard. Seu olhar doce e ao mesmo tempo maníaco era uma afronta a minha sanidade. Eu não tinha noção se sairia viva daquela situação. Mas sai, porque meus olhos se abriram e a primeira coisa que fiz ao despertar foi respirar fundo e tocar meu peito. Eu estava livre... Claro que estava. E lá fora ainda era noite, o azul escuro do céu pontilhado destacava estrelinhas.

Um som me assustou. Não acordei por causa do meu pesadelo, eu o fiz pelos sons estranhos que vinham de Fletcher. Olhando-o, ficou perceptível que estava preso em um pesadelo. Uma expressão estranha de medo e pavor nas linhas da face, olhos fechados e murmúrios baixos.

— Não... Não... Não... Saia daqui maldito... — Dizia ele repetidamente. Suor escorria pela testa, o peito subia e descia depressa. — Não...

— Howard? — ajeitei-me, subindo o corpo no edredom. — Howard, sou eu. Estou aqui com você. — O segurei no peito; o toque calmo em cima do coração que o acalentou. Imediatamente meu marido se virou, abraçou a minha cintura e deitou sua cabeça em cima da minha barriga. Espiei por cima de sua cabeça... Estava dormindo ainda. — Tudo bem, sou eu... — mexi em seu couro capilar com cautela.

Ultraviolência: FragmentosOnde histórias criam vida. Descubra agora