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Eu andei por horas ou dias? Não soube exatamente quanto tempo passei zanzando pela mata, pelas estradas, pelos pastos... Toda a dor reprimida por tanto tempo, o martírio de estar dormindo com um sociopata. Tudo que eu era estava destruído, todas as minhas crenças e desejos... As lágrimas se misturavam ao sangue nas minhas bochechas, ocasionando uma sensação de grude incômoda. Eu poderia cansar meus pés por um ano naquela jornada em busca de algum lugar seguro que não seria tão ruim quanto continuar naquele condomínio. Nos primeiros minutos, tive medo de ser seguida, sequestrada de novo ou tomar um tiro. Cada segundo em silêncio poderia ser antecessor de um som terrível, mas tudo continuou calado. Em algum momento, o sol começou a esquentar, demonstrando que estava perto do seu pico ao meio-dia.

— Ei moça, tudo bem? — uma senhora, de mais ou menos quarenta anos, correu até mim. Eu olhei para trás. O carro estava estacionado a vários metros, indicando que ela me chamou antes e não ouvi. Estava sozinha, aparentemente. Quando notou que eu não estava suja de tinta, pôs as mãos na boca manchada de linhas retas pelos anos de expressão. — Meu Deus, e todo esse sangue? O que aconteceu? Te fizeram algum mal? Você está machucada?

— Eu... — Eu estava. Muito. Não do jeito que ela pensou, mas em pontos mais profundos do que qualquer um poderia cogitar. Com um aceno, assenti. Ela começou a gritar e tagarelar, me levando para o seu veículo.

Eu me sentei no banco do passageiro, sem me importar em suja-lo e ela disse que me levaria para a delegacia de polícia mais próxima. Aceitei. Durante o caminho demorado pela rodovia, repassei mentalmente todos os momentos péssimos que tive com Damon Constantin, antes e depois da grande mentira, quando nós éramos paciente e doutora e quando nos tornamos marido e mulher sem meu consentimento. Era engraçado pensar que ele disse que nunca me machucaria fisicamente, como se o que fez não fosse pior ou tão grave quanto. A hipocrisia de um assassino, a manipulação de um psicopata frio... Talvez eu nunca devesse ter saído da minha cidade. Talvez eu nunca devesse ter me tornado médica. Fechei meus olhos. Eu estava tão exausta... De repente, sobreviver se tornou um peso que me puxou para um buraco sombrio e escuro da minha mente.

***

Daquela vez não era um sonho, era uma lembrança vívida de quando eu cheguei em casa e vi todas aquelas luzes vermelhas e azuis tingindo minha visão. Pela primeira vez na vida, vi minha mãe em um canto... chorando. Lágrimas corriam por suas bochechas brancas e ela parecia atribulada por uma tragédia maior, por uma... perda. Glenda estava conversando com os policiais e se derramando como se estivesse prestes a encher um rio inteiro com suas lágrimas. Meu corpo pequeno congelou. Eu me esqueci de tudo que tinha aprendido na ginástica durante aquela semana, das provocações das minhas colegas de turma ou dos elogios da senhora Flowers. Tive um apagão da minha matéria favorita de ciências e me esqueci do que fazer ou o que pensar. Com cautela, eu me aproximei da matriarca. Por quê todos aqueles vizinhos xeretando nossa vida? Alguns nos olhavam com pena, outros se lamentavam. Por quê? Por quê?

— Mamãe, o que... — Foram dias intensos, tanto em casa quanto fora dela. Dias em que pensei em desistir do esporte e focar apenas nos livros. Poderia me tornar uma bibliotecária, combinava comigo. Qualquer coisa... Desde que Gwen apoiasse. Tudo do que eu precisava era o apoio dela, do seu incentivo, de saber que ele ela estaria lá por mim. Ela era o meu porto seguro durante todo o tempo em que estivemos vivas, desde que éramos dois embriões abraçados na barriga de Victoria. — O que houve? — eu perguntei finalmente.

Victoria Queenie continuou sendo frágil, chorando e se lamentando. O borrado da maquiagem nas bochechas, a ausência do cigarro ou suporte nos dedos, ela demonstrando alguma emoção já não podia ser um bom sinal. Eu estava numa realidade paralela vivendo o pior dia da minha vida.

— Holly... — mamãe nunca usava aquele tom comigo. Ela nunca era algo além de fria e indiferente.

A ignorei.

— Cadê a Gwen?

— Holly... — Repetiu, tentando segurar meus ombros.

Eu me afastei.

— Onde tá a minha irmã? — gritei para Glenda, que abaixou a face e tombou-a na palma da mão, cheia de pesar. Ela não conseguiu me responder. Ninguém conseguiu. Papai foi para perto de um dos oficiais, com a cabeça baixa. Foi então que eu vi. Indo para uma ambulância, havia um corpo embaixo de um saco preto sob uma maca. E meu dei conta naquele momento. Minhas pernas falharam, eu cai de joelhos e perdi completamente o ar que residia em meus pulmões. As lágrimas salgadas desceram por minhas bochechas de uma vez e em silêncio, manchando minha camiseta. Todo mundo estava lá, menos Gwen. Ela nunca mais estaria.

***

— Moça, nós chegamos. — A senhora de antes me avisou. — Quando abri meus olhos, vi que estávamos em frente ao departamento de polícia de Scarye Fall. Sem pensar direito e sentindo meus músculos bambos, abri a porta dela e me movi em direção as escadas frias. O sol foi embora, estava ficando tarde... e frio. — Tudo bem? Você quer ajuda?

Fiz que não. Eu conseguia subir aqueles degraus, conseguia abrir as portas e entrar naquele estabelecimento. Tinha de fazer sozinha. Todos os olhares se voltaram para a mulher de vermelho e pele manchada sem sapatos... Eu sabia que minha aparência deveria estar macabra, como uma sobrevivente de filme de terror, mas não tinha outro lugar em que eu pudesse estar. Quando uma moça veio para perto de mim, ameaçando segurar em seu coldre, eu lancei um olhar de desdém para ela. Mais de seus colegas se uniram a ela, curiosos com o que aquilo significava. Todos me analisavam, vendo uma aberração da natureza. Apesar do julgamento em evidência, engoli a vergonha e ergui meu queixo. Ele era o monstro, não eu.

— Meu nome é Holly Harriet Queenie. E eu acabo de fugir do cativeiro de Damond Fletcher Constantin.

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Ultraviolência: FragmentosOnde histórias criam vida. Descubra agora