Capítulo 4, parte 1: Transplante

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O quarto 23 era paralelo aos demais quartos da pensão e de até mesmo dos outros quartos das casas comuns e não alugáveis da cidade. Às seis da manhã, Euijoo e Nicholas levavam um ritmo disposto nunca incorporado por qualquer outro indivíduo àquele horário, e era isso que tornava o quarto vinte e três da Pensão Asahikawa tão paralelo aos demais quartos das redondezas, fossem eles alugáveis ou domésticos. Essa característica ou acontecimento incomum presente apenas naquele pequeno cubículo ocupado por dois rapazes de mesma idade e nacionalidades diferentes partia do banal ato de preparar-se para mais um dia de universidade. Era um trânsito amigável pelos espaços estreitos do dormitório, onde eles se esbarravam, às vezes, como formiguinhas cegas que caminham por direções opostas no formigueiro.
Houve um momento em que um som persistente e sucintamente desarmonioso causou um incômodo em Nicholas até que ele notasse que era o seu celular vibrando sobre a mesa de cabeceira e o apanhasse a fim de ignorar a possível chamada de spam que alguma empresa desprovida de noção estaria lhe fazendo em um horário tão precoce do dia. Foi quando ele viu que a vibração, na realidade, era em virtude de uma notificação de email do Hospital Sapporo, que posteriormente, em questão de poucos segundos, causaria a ele uma sensação inestimável de euforia. O email noticiava que ele havia passado para o primeiro lugar na fila para o transplante de coração. Embora significasse que ele ainda estava esperando por uma doação, Nicholas não limitou seus sentimentos de satisfação e felicidade. Pensou, então, como estaria o antigo número um: teria conseguido uma doação e feito uma cirurgia? Quão sortuda devia ser aquela pessoa. Era essa a sorte que ele almejava com veemência, ainda que fosse estranho ele não ter sido convocado ao hospital junto de outros pacientes para realizar exames de compatibilidade e ter certeza de que o coração disponível era compatível com o corpo do primeiro da fila.
Nicholas contatou sua mãe para passar a notícia, sem esperar, em momento algum, que ela estivesse disponível para responder imediatamente. Portanto, foi uma surpresa quando ela rapidamente apareceu online e perguntou a ele algo que prenunciava o fim de sua euforia, ao mesmo tempo que sanava sua dúvida a respeito da falta da convocação para os exames: "Tenho uma notícia ruim. Quer ouvir agora ou mais tarde?".
A sorte que ele idealizou, então, transformou-se em agouro assim que ele soube que o antigo número um faleceu de infarto naquela madrugada, como um bicho-papão engraçado voltando à forma do mais monstruoso de seus medos logo após um feitiço de efeito oposto ao riddikulus ser aplicado. Nicholas bem conhecia a sua doença, principalmente o estágio em que estava. Em vista disso, tinha plena e categórica noção do quão grave ela era e a que fim poderia o levar. No entanto, apesar de demonstrar completa ciência desses fins, ser lembrado de que poderia morrer a qualquer momento, mesmo que não fosse exatamente com essas palavras, ainda era um baque violento.
Quando Euijoo, que todo aquele tempo esteve ocupado com seu cronograma rígido de higiene bucal, saiu do banheiro e viu Nicholas deitado encarando o teto com olhos desprovidos de vida, percebeu astutamente a sua depressão. Se aquele sentimento horrível presente em seus olhos pétreos fosse material, seria possível engarrafá-lo, todavia ele não queria engarrafá-lo, ainda que de qualquer modo isso fosse impossível. Euijoo escolheu ignorá-lo, imaginando que, seja lá o que fosse que teria o deixado daquele jeito, passaria, mas principalmente porque não tinha tempo e nem intimidade para perguntar o que havia acontecido. Então foi embora e deixou-o sozinho.

Um pouco mais tarde, Nicholas adormeceu como se fosse um de seus últimos cochilos (não que de fato fosse, mas foi o que ele pensou ao acordar às oito e meia, totalmente coberto, como se estivesse se preparando para vestir uma mortalha). Às oito e quarenta ele decidiu espairecer na área compartilhada assistindo ao canal de notícias. Era algo horrível de se pensar, mas ele esperava que alguma tragédia fosse distraí-lo. Nicholas aumentou o volume da televisão.
"...a Síndrome do Celibato tem causado graves problemas sociais e econômicos no Japão. Segundo dados do Instituto de Pesquisa, o Japão é o país com a segunda população mais idosa do mundo e um dos países com a taxa de natalidade mais baixa", disse a jornalista. "O governo japonês anunciou que pretende investir em torno de cento e vinte e seis milhões de ienes para incentivar os jovens a se juntarem e ter filhos após uma recente pesquisa ter revelado que em torno de quarenta por cento dos homens de até trinta anos nunca foram à encontros, e que o interesse por relações românticas e sexuais vêm diminuindo significativamente no país..."
Ele abaixou o volume e saiu ainda mais transtornado. Foi espairecer no jardim subsequente à entrada.

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