Capítulo 4, parte 2: Transplante

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   L. M. Montgomery um dia escreveu: "Minha vida é um perfeito cemitério de esperanças enterradas". Nicholas não era um espírito livre como a protagonista do livro de Montgomery e tampouco via a vida com o mesmo romantismo que ela, mas sentiu essa frase incutir em suas entranhas como se fosse um fragmento perdido de seu ser. Ele enterrou muitas esperanças ao longo da vida, algumas delas antes mesmo de se reconhecerem como tal, enquanto as poucas que restaram sem ter uma cova que as aguardava precisaram ser sepultadas de última hora.
   Sua família nunca pareceu tão certa quanto parecia àquela tarde. Em fato, nunca houve nada de errado com ela — era só que sua casa parecia mais enternecedora. Seus parentes o induziram a tentar esquecer o exame de compatibilidade que foi realizado naquele início de tarde, fosse fazendo-o explorar o acervo de livros da Sra. Wang, escutando A-Mei no volume mais alto enquanto lavava a louça do café da manhã na companhia do Sr. Wang ou ouvindo os relatos de seu avô sobre a fuga dos nacionalistas para a ilha de Taiwan como se fosse a primeira vez. A mesa, posta para o almoço, parecia um cenário de comercial de margarina: pano branco cobrindo o móvel, fartura, família unida e a luz amarelada do sol iluminando-os através da janela.
  Diante dele estavam algumas tigelas quentíssimas, entupidas de acompanhamentos até o topo, estes que foram postos por cada membro da família com presteza que não podia ser medida, e um vapor com um aroma que por si só afastava qualquer desolação. Todavia, embora rodeado de prazeres nunca antes dispostos para ele de maneira semelhante a que ele nunca esteve disposto para tais prazeres, e tomado por um anseio condizente com a sua avidez por aproveitar cada sabor que estava disposto bem ante aos seus olhos sem sequer uma barreira, Nicholas não conseguia desviar, logo que percebeu, sua atenção da verdadeira essência daquele almoço. Do acervo de livros às histórias da Guerra Civil Chinesa, do cozer macarrão à nostalgia das músicas de A-Mei, da tapeçaria que adornava a mesa de centro ao filme que sua irmã pôs na tv, mas que ninguém estava realmente assistindo; tudo tinha o objetivo de esconder a ansiedade pelo resultado do exame e a dúvida que corroía, não por ser dúvida, mas por estar sendo sentida. A essência daquele almoço, como ele reparou, era o desespero, compartilhado entre eles como um mal hereditário. No entanto, também presente, o amor que o causava. Sim, pois se não houvesse amor, não haveria aflição. Portanto, Nicholas fingiu não ver a angústia em seus corações, e em troca também escondeu a sua.

   O almoço cessou-se depois que uma longa conversa foi jogada fora assim que os pratos foram esvaziados. Eram coisas como as jornadas de vida triunfantes de alguns primos que acabaram de sair da casa de seus pais e a descoberta de que o cargo de Nicholas na família seria promovido, pois muito em breve se tornaria tio. Nenhum assunto de caráter desonesto, baixo-astral ou fofocas foram entabulados àquela mesa, e Nicholas deixou o penúltimo para fazer quando estivesse sozinho em seu quarto, em um diálogo interno consigo mesmo, resultante da reflexão estimulada pelo livro que estava lendo. Era três horas da tarde, e a quietude da rua e a serenidade do som do vento que, de modo contrário, soprava ferozmente no horizonte, bem no apogeu dos céus, incutia nele a mais pura solidão, mas também o mais grandioso dos confortos. Para entender esse sentimento, é só pensar em como se sente um marinheiro apaixonado pelo mar, navegando à noite, sozinho, em um vasto oceano. Naquela tarde várias páginas foram lidas, e esse simples ato revelou a ele algo sobre si mesmo que ele não havia reparado até então, embora sempre estivesse acompanhado por esse sentimento; foi revelado que não suportava aquela realidade enfadonha, e que a maneira esfaimada com qual lia aquele livro era uma tentativa de esquecê-la. No entanto, em relação ao último ponto, era onde estava a descoberta mais chocante e o motivo pelo qual seu sofrimento e agonia teriam aumentado exponencialmente nos últimos dias. Nicholas percebeu que, apesar de conhecer sua doença, ter ciência de seu estágio e a que fim ele poderia levá-lo, ele ainda teria ignorado uma elucubração mais profunda a seu respeito todo aquele tempo. Sempre que era lembrado que estava severamente enfermo por alguém que outrora fosse seu melhor amigo, optava por postergar tal conclusão, imaginando que já teria aceitado-a de forma madura, quando, na verdade, estava ignorando-a, sendo a realização temerosa demais para ser enfrentada. Todavia, assim que chegou ao seu conhecimento o falecimento de um dos pacientes na lista de transplante e a convocação para o exame de compatibilidade, em virtude da disponibilidade de uma doação, ele nunca estivera tão próximo do fato de que estava doente e que essa doença poderia levá-lo ao seu fim; que aquela poderia ser a única chance de conseguir uma doação em tanto tempo, e portanto precisava dela. A categórica proximidade com os fatos tornavam-os impossíveis de serem ignorados, e todo o sofrimento, cujo seria fruto do enfrentamento que foi evitado, de repente, caiu sobre ele de uma vez só.

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