Capítulo 5: Captivans

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   Quando se está obcecado por alguma coisa, uma ideia ou alguém, são essas as primeiras coisas que se pensa ao acordar. Não importa a força da letargia, nem mesmo o impacto da inconsciência, o objeto sob obsessão será a primeira coisa que virá à cabeça. Nicholas acordou e lembrou imediatamente da cirurgia de transplante. Foi tão imediato que é mais preciso afirmar que ele pensou e acordou ao mesmo tempo do que afirmar que ele pensou um segundo depois de acordar. Sua visão ficou desfocada por alguns segundos, e quando esse efeito acabou ele conseguiu identificar aquelas linhas cilíndricas e fulgurantes sobre seu corpo como as lâmpadas do teto.
   Ele regozijou-se depois de julgar — baseado em suas sensações físicas — que tudo ocorreu do jeito que deveria, e mesmo as complicações que poderiam surgir a partir daquele momento o contentavam, pois estas seriam em relação à rejeição de seu coração pelo corpo ou por sua falta de cuidados com o órgão, e não teriam relação alguma com a prosaica e chata, chatíssima!, insuficiência cardíaca. Então, de repente, houve um breve momento de questionamento em que ele ficou petrificado, e nem mesmo a enfermeira que havia entrado no quarto pôde perceber que ele havia acordado. Conseguinte aos seus questionamentos, Nicholas tirou uma conclusão silenciosa e tentou pôr a mão sobre o lado esquerdo do peito. Ao fazê-lo, a enfermeira o coibiu.
   — Não faça isso! — recomendou. Parecia surpresa com o movimento repentino.
   Ela aconselhou-o a ser cuidadoso durante o processo de cicatrização e saiu em seguida. Ele imaginou que ela chamaria alguém. Aproveitando a privacidade momentânea, ele ergueu a mão novamente, mas ao invés de tocar em seu peito tocou dois dedos numa parte do pescoço abaixo da mandíbula. Estava ali a razão por trás de sua repentina ponderação: aquele pulso que sentia já não era mais de seu coração. Em outras palavras, o coração original não pertencia mais ao corpo que o produziu, e o pulso que ele sentia na ponta dos dedos era de um coração que com outra pessoa nasceu e com ela viveu por muito tempo; entretanto essa pessoa, carecida de um órgão vital, encontrava-se morta, mas seu coração ainda batia.
   Era quase como um livro vitoriano de ficção científica.

   A enfermeira voltou e trouxe uma médica muito carismática consigo. Tratava-se da cirurgiã responsável pelo transplante. Ela perguntou a Nicholas sobre como ele se sentia, examinou ele e os equipamentos adjacentes à cama e depois conversou com ele, informando-o sobre o coração doado:
   — É perfeitamente compatível com o seu corpo. Quem o doou tinha tudo para dá-lo a você, e você tinha tudo para recebê-lo. Chamamos isso de compatibilidade perfeita.
   — Pode me contar sobre a pessoa que o doou para mim? — pediu Nicholas.
   A médica revelou que aquilo era algo que já ia fazer, pois é ético que o receptor saiba sobre o doador e sua família e os agradeça. "Era uma moça de vinte e um anos que teve morte encefálica há dois dias" informou. "Os parentes decidiram doar todos os órgãos que podiam. Parece que era o desejo da moça. Não é uma decisão fácil de se tomar.". A doutora, então, comentou sobre a baixa possibilidade de rejeição do coração pelo corpo, pois os exames de compatibilidade anunciaram Nicholas como o receptor perfeito, tendo idade, tipo sanguíneo e outros fatores semelhantes ao da doadora, e que mesmo uma rejeição poderia ser facilmente revertida e superada em virtude da compatibilidade.

   Os dias a partir daquele foram de muita observação. Nicholas experimentou fazer caminhadas na área externa dias depois da cirurgia, e ficou contente quando começou a usufruir das vantagens de um coração sadio: suas pernas não inchavam, não lhe faltava ar subitamente, as tonturas pararam igualmente à fadiga súbita, não haviam mais tosses ardentes e entre outros. Ele também usufruiu da compatibilidade perfeita e da juventude, que lhes foram vantajosas e contribuíram para que, na data prevista, ele saísse do hospital saudável.
   As comidas estranhas e gelatinas sabor uva foram substituídas pelos cozidos saborosos do Sr. Wang e pelas sobremesas saudáveis e gostosas de frutas que somente a Sra. Zhang, vó de Nicholas, já um pouco cega e curvada, sabia fazer. Dias de cuidado, remédios, consultas médicas e observação se passaram desde então. Devia ser a segunda semana de Abril, e muito embora estar em casa fosse ótimo, Nicholas começou a se incomodar com sua inatividade intelectual e ansiava para começar a exercer os privilégios de um corpo saudável. Sua angústia era tanta que ele se oferecia para resolver qualquer necessidade ou urgência que surgisse em casa e que estivesse ao seu alcance, como comprar legumes ou trocar a lâmpada da sala, até que tais necessidades e urgências não preenchessem mais a lacuna dentro de si.
   Ele marcou uma consulta no hospital só para perguntar se era seguro voltar a frequentar o campus. Depois da consulta, naquela mesma tarde, ele trouxe um semblante rígido de insatisfação consigo ao voltar para casa. A permissão da doutora para voltar ao campus tinha pouca importância quando posta ao lado do que ela disse em seguida, palavras que ecoavam na cabeça de Nicholas como se cada um de seus neurônios fossem paredes úmidas de uma caverna: "Você deve fazer uma faculdade perto de casa. Há a Universidade de Sapporo, que fica em um ponto estratégico na cidade. Imagino que não vai precisar de transporte público para chegar até lá".

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