água quente

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entro debaixo do chuveiro e espero que a água quente me faça derreter. espero escorrer pelo ralo e ser lavada embora pelo sabão.

espero que você sinta que eu sou suficientemente boa para que eu possa sentir-me assim também. completa, satisfeita com tudo que alcancei e conformada com aquilo que mantém-se distante o bastante para que eu nunca alcance.

não quero passar o resto da vida pensando que eu nunca me mexi ou lutei tanto quanto você gostaria.

queria só ter um pouquinho de paz.

queria ter a liberdade de me sentir em casa enquanto você mostra de várias formas que eu nunca pertenci a este lar.

queria que você não desse risada de mim quando choro ou digo o que sinto.

queria poder descansar quando estou cansada sem sentir-me culpada ao lembrar de seu olhar reprovador.

queria que você valorizasse o meu esforço e não que falasse toda hora sobre o quanto eu não fiz nada o dia todo. afinal, na realidade você nem sabe disso.

e é por isso que eu entro debaixo do chuveiro e espero que a água quente me faça derreter.

é por isso que eu olho para o ralo, rezando para que o sabão lave-me embora e faça-me escorrer para a escuridão profunda dos esgotos.

suplico, com os olhos voltados para os buraquinhos, atravessando a estrutura metálica com meus soluços e lamentos.

peço, educada, para que o encanamento me carregue para bem longe.

e choro. choro tanto que sinto o rosto quente, mas não sinto as lágrimas porque elas camuflam-se com a água do chuveiro.

e sinto. sinto como se estivesse derretendo pouco a pouco, escorrendo para longe, sumindo até não restar um único fiapo de emoção.

e, finalmente, vem o nada. o cheiro do sabonete é suave e agradável, poderia dizer que sinto muito, mas não seria verdade.

raios que me partemOnde histórias criam vida. Descubra agora