TRAVESSA DO ANJO

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ANABELA

e o pai, Marcelo, tinham orgulho de dizer que moravam na casa mais antiga da cidade, a Travessa do Anjo, uma ilha feita de passado no meio de um mar de vidro e metal.

Tudo naquele lugar era exatamente igual ao que sempre fora. Os anos e a vida de todos os familiares que moraram ali permaneciam gravados nos cheiros, nas cores e nos detalhes de cada canto. Uma foto na parede, uma figura colada na porta de um armário, a xícara pintada à mão com o nome da tia querida, tudo permanecia na pequena casinha azul, com telhado vermelho e fechada estreita onde cabiam somente uma porta, uma janela e, lá dentro, todos os sonhos do mundo.

O portão da entrada era de ferro e o muro, bem baixo. Entre o muro e a porta havia um jardim com flores brotando o ano todo, especialmente os pequenos e delicados miosotis, jovens descendentes de mudas plantadas havia muito tempo.

Junto das flores, um banco com dois lugares, um convite para sentar e conversar.

Apesar de estreita, a Travessa do Anjo era comprida. Logo na entrada ficava o escritório de Marcelo. A seguir, duas pequenas salas com fotografias antigas nas paredes, estantes de livros, sofás e cadeiras para as visitas. Do lado direito, um corredor. À esquerda, o quarto de Anabela e, logo depois, lo do pai. A cozinha, clara e espaçosa, tinha vista para o pomar, onde Anabela colhia laranjas, limões e maracujás, suas frutas preferidas. As laranjas eram muito doces e inacreditavelmente suculentas. Era de lá que soprava o vento adocicado que fazia daquela casa a mais ventilada da cidade.

O nome, Travessa do Anjo, foi inspirado em um painel de azulejos colocado sobre a porta, bem pertinho do telhado, com a pintura de um anjo ajudando duas crianças a atravessar uma ponte. Os azulejos eram de Portugal e vieram com dona Maria de Lourdes, bisavó de Marcelo, quando ela se mudara para lá.

Definitivamente, a vida daquela família era muito distinta da do mundo ao redor e isso incomodava. Quase todo dia aparecia algum curioso por ali. Tinha gente que atravessava a cidade para ver a Travessa do Anjo de perto, todos tão admirados, parados na frente da casa de Anabela como se estivessem vendo uma legítima caravela portuguesa dos tempos do descobrimento:

-Como eles vivem sem ar-condicionado?

-Sem antenas?

-E sem micro-ondas?

Isso é praticamente uma caverna - diziam umas senhoras muito arrumadas, de cabelos pintados e bolsas douradas, que passavam o tempo prestando atenção na vida dos outros.

Falavam, falavam e o vento levava para longe tantas palavras vazias, talvez desnecessárias. Anabela e Marcelo não ligavam. Estavam ocupados com outras coisas... Foi naquela casa que Anabela nasceu, aprendeu a andar, a falar, e cresceu até se tornar tão linda, de rosto pintado de sardas e olhos tão verdes como as luzes do Natal dos seus quatorze anos, quando a vida começou a mudar tanto para aquela família.

Sua mãe havia morrido quando Anabela tinha sete anos. Por causa disso ela até poderia pensar que era a menina mais sem sorte do mundo, sozinha, sem mãe. Mas não - ela preferia olhar sua realidade com outros olhos e virar a vida ao contrário. Então se achava a garota mais sortuda do mundo, isso sim, por ter um pai tão incrível. A lembrança da mãe não era sofrimento. Só dúvidas, esperança e saudade.

Quando Anabela falava sobre a mãe, ou fazia perguntas sobre a morte para Marcelo ou outro parente, o que sempre ouvia é que Melinda partira para um lugar melhor. Anabela imaginava, desde pequena, que esse tão falado Lugar Melhor seria um mundo parecido com o nosso, como um espelho, uma cópia, para onde iria tudo o que morresse aqui: animais, plantas, flores, pessoas, até as formigas, que podiam se afogar ao caírem num copo de suco qualquer. Tudo o que morria, chegando lá..., lá num certo lugar, ...quem sabe até a mãe de Anabela..., voltava a viver. De um jeito diferente do nosso, mas viveria.

Seus momentos mais felizes eram os que passava no quintal da Travessa do Anjo, seu lugar preferido para ficar quando estava triste ou feliz, ou quando queria parar um pouco, pensar e observar os pequenos e grandes mistérios da vida. Anabela parecia ver e até tocar os segredos das coisas. Sempre que via uma flor começando a murchar, ou uma borboleta com uma asa machucada, ou uma formiguinha carregada pelas águas da chuva, explicavalhes baixinho que todos os seres vivos um dia iam para outro lugar, talvez um lugar lindo, quem sabe muito melhor do que aquela vida. E por qué não? No fundo, as pequenas mortes da natureza eram para Anabela uma esperança de fazer contato com a mãe, especialmente quando ela via um miosótis - a flor preferida de Melinda - começando a amarelar suas pétalas, dando sinal de que era hora de partir.

Anabela amarrava pequenos e delicados bilhetinhos, feitos de papel recortado e letrinha miúda, nos miosotis que morriam no quintal. Enterrava os bilhetes e as flores, delicadamente. Eram recados curtinhos, segredos, notícias, contando que estava bem na escola, que melhorara da gripe, ou, às vezes, breves confissões de saudade. Saudade era quase uma alegria para ela, um jeito de eternizar as coisas. Com a sua pá de jardineira, arrumava os bilhetes e as flores, cobria-os de terra e rezava. Ela acreditava que dali aconteceria algo mágico: a flor viajaria, de alguma forma, para o Lugar Melhor. E voltaria a viver, levando o bilhete para as mãos de Melinda.

Os pedacinhos de papel ela guardava em uma caixa de madeira forrada de tecidos - forrar caixas era um dos passatempos preferidos de Melinda, e Anabela adorava guardar dentro delas os objetos mais especiais. Quando soube que o avô de Luciana, sua melhor amiga,havia morrido, aproveitou a ocasião e escreveu uma carta de duas páginas para a mãe e deu um jeitinho de colocar o envelope para ser enterrado junto com ele.

Anabela pensava que a morte era uma cortina pesada e escura, como um veludo vermelho, que só poderia ser aberta para quem passasse daqui para lá. Mas houve um dia que mudou sua vida, quando ela compreendeu de forma definitiva que essa cortina podia ser leve e clara como seda azul e que, com um sopro do vento, ela podia se abrir e dar passagem a alguém vindo de lá... para cá.

O motivo dessa volta nunca se sabe, até que esse alguém diga. A razão pode ser simples. Ou terrivelmente assustadora. Até aquele dia ela não sabia bem de nada disso. Anabela realmente acreditava que os mortos não voltavam. De repente.

ela entendeu que isso podia ser um tremendo engano...

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A BAILARINA FANTASMAOnde histórias criam vida. Descubra agora