DANÇA DE ANJO

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O PIANO

já estava instalado no lugar mais ventilado da casa. Os móveis foram devidamente montados e já exibiam a porcelana esco- cesa, que cruzara o oceano e chegara praticamente intacta. Uma ou duas peças foram quebradas, mas nada grave. A pra- taria, os faqueiros, as obras de arte, tudo já estava disposto pela casa como se sempre tivesse pertencido a ela. Com tudo arrumado, Elisabeth se sentia em casa, adaptada à vida brasi leira. Seu temperamento forte encontrou a pacífica aceitação (e admiração) de Maria Rosa e Antônio, o que facilitou muito a vida para todos.

Elisabeth era forte demais para passar pela vida de qual- quer pessoa sem provocar um certo impacto, que natural- mente resultava em mudança no outro. Não seria diferente com aquela parte de sua família com quem, a partir de então. iria conviver para o resto da vida. Ela sabia exatamente até que ponto deveria aceitar os modos de vida brasileiros e a partir de que momento seu poder de matriarca deveria intervir

Em seu intimo, ela sabia também que a vida seria mais leve do que era na Europa. A leveza estaria em pequenas coisas. Em seus vestidos, que agora tinham muito menos mangas, golas e anáguas. Em sua rotina, que não a obrigava mais a viver com tantos compromissos sociais, acompanhan do o marido em viagens de negócios, falando várias línguas, conforme a necessidade, agindo como a primeira-dama da companhia de ferro.

Por tudo isso, Elisabeth estava sempre de ótimo humor. A mudança para o Brasil não foi, de forma alguma, algo dificil de aceitar. Esse ponto de vista conferiu a ela a alegria e a boa vontade necessárias para confortar Carlotta. Esta, sim, sentiu muito a partida da Escócia. Lá ela estava envolvida com uma importante companhia de balé, da qual fazia parte desde muito cedo. Sua carreira no grupo era promissora e, com mais um ou dois anos, ela seria a primeira bailarina. Mas a guerra interrom- pera seus planos de forma tão brusca que era impossível não se sentir mal ao ver a carreira lhe escapando das mãos.

Elisabeth pensou rápido e encontrou uma maneira de animar Carlotta. O que havia trazido seu filho para Fortaleza fora a construção de um teatro, que agora existia, estava de pé, belíssimo como qualquer outro teatro-jardim da Europa. Mas ainda faltava muita coisa e, agora, o teatro precisava de Car- lotta, para oferecer a ele ainda mais vida. A princípio ela não entendeu, mas Elisabeth foi um pouco mais clara. As duas poderiam iniciar em Fortaleza uma escola de artes, ensinando piano e balé nas dependências do teatro. Seu marido e filho haviam trazido a estrutura. Agora as mulheres MacFarlane levariam para aquela casa o espírito das artes, formando artis- tas para que o palco nunca estivesse vazio.

Carlotta não fazia ideia de como isso aconteceria. Para ela, o Brasil era tão distante e tão diferente da sua Glasgow que sua imaginação não conseguia pensar na realização desse sonho. Mas ela confiava na mãe.

As duas investiram na compra do material necessá- rio para a companhia. Foram inúmeros pares de sapatilhas, figurinos de balé, livros, partituras para os alunos de piano, E, com todo esse material, encheram uma das maiores caixas que haviam cruzado o oceano e a última a ser aberta. Mas finalmente o día chegou.

A caixa gigantesca, grande demais para caber dentro de casa, estava no quintal, coberta com uma lona para que ficasse protegida das raras chuvas do Nordeste.

Clara já sabia do conteúdo da caixa e, se não insistia duas vezes a cada hora para que fosse aberta, era para atender aos apelos de Maria Rosa, que lhe suplicava para ter paciência e controlar a ansiedade.

Ali dentro estavam as peças de um novo mundo. Quando os pedaços de madeira foram arrancados pelos dois ajudantes contratados por Joseph para esse fim, Clara entrou na caixa sem cerimônia, mergulhando nas sapatilhas, coberta por um mar de tule, cetim, meias, livros e adereços.

- Escola de Balé e Piano Carlotta MacFarlane! - disse Elisabeth, transformando a abertura da caixa em ato solene. Não seria fácil o que precisavam fazer até que a escola

existisse, mas Elisabeth sabia exatamente por onde começar. As distintas senhoras da sociedade de Fortaleza, que já estavam quase desistindo da tentativa de amizade com as europeias, foram surpreendidas com os convites que chega ram às suas residências, chamando todas elas para um chá na casa dos MacFarlanes.

De uma hora para outra, elas não conseguiam falar ou pensar em outra coisa. O convite chegara com vinte dias de antecedência que distinção! Assim, tiveram tempo de provi denciar o que precisavam para se apresentar adequadamente vestidas para o evento. Um recital!

Elisabeth recebeu todas com simpatia e educação. Deli cadamente, sugeriu que o calor estava insuportável e que ela mesma não conseguia manter o uso de seus vestidos euro- peus e já havia providenciado suas novas roupas. Maria Rosa já havia levado Elisabeth às modestas casas das rendeiras, amigas de sua mãe, que tinha a mesma profissão. Nada en- cantara mais sua sogra do que os dedos ágeis daquelas artis- tas. Tanto que as três melhores rendeiras foram contratadas para trabalhar exclusivamente nas roupas da família.

O recital aconteceu das cinco da tarde às sete da noite. Eli- sabeth conduziu cada passo do encontro. Inicialmente, tocou três belíssimas peças de piano, para o encantamento de todos. A seguir, apresentou oficialmente a filha Carlotta, que dan- çou a "Valsa das Flores", um dos números do Quebra-Nozes, o balé de sua predileção.

Carlotta agradeceu os aplausos emocionados. Elisabeth se levantou do piano e pediu que escutassem algo que tinha a dizer. As senhoras que estavam ali foram escolhidas para ouvir, em primeira mão, o projeto que a família guardava para a cidade.

Mãe e filha expuseram a proposta de ensino de balé e piano. Comentaram o quanto era encantador para as moças saber tocar um instrumento e dançar balé com perfeição. Elas iam com o tempo se tornar mais delicadas e graciosas, tais e quais as deusas gregas. Além de mais cultas, obviamente, porque Elisabeth incluiria na programação do curso um bom número de aulas teóricas sobre os principais compositores e escritores europeus.

As mulheres se agitaram com a ideia, encantadas. Mas Elisabeth lamentou o quanto ainda faltava para realizar o so- nho: a autorização para que o Theatro José de Alencar fun- cionasse com a estrutura de espelhos e o mais importante: as alunas.

As senhoras presentes se prontificaram, de imediato, a conversar com seus respectivos maridos para resolver os problemas burocráticos em poucos dias.

Enquanto Elisabeth propunha tocar novamente a "Valsa das Flores" para que Carlotta dançasse, Clara entrou na sala. Durante todos aqueles dias que antecederam o recital, Clara estivera o tempo inteiro assistindo aos ensaios de sua tia Carlotta, aprendendo como lidar com as fitas da sapatilha, com a delicadeza dos tules, com os movimentos, e toda essa sua atenção fora o bastante para que ela acompanhasse a tia na dança.

A perfeita delicadeza de seus gestos pegou de surpresa o coração da família. Nem Carlotta imaginava que a sobrinha já pudesse manifestar tão cedo a leveza e disciplina necessá- rias para o estudo do balé. Seu corpo e sua postura eram como o melhor mármore que um escultor pudesse dispor para seu trabalho. As dúvidas de Carlotta sobre o sucesso da compa- nhia de balé foram imediatamente dissipadas, como uma nuvem que o vento sopra para longe.

Já Elisabeth se sentia mal com essa certeza, mas Clara apresentava muito mais altivez e talento que Carlotta em sua idade. Maria Rosa, Joseph e até Antônio, que fora chamado para assistir à apresentação espontânea da neta, estavam emocionados. A música terminou e Clara, tranquila como um anjo, simplesmente agradeceu, sem a menor noção do arrebatamento que acabara de causar no coração de todos. Ela só queria dançar.

Elisabeth propós e Carlotta concordou que a escola deveria. mudar de nome:

Escola de Balé e Piano Clara MacFarlane, em homenagem à nossa primeira aluna.

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A BAILARINA FANTASMAOnde histórias criam vida. Descubra agora