O PIANO

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DE TANTO

respirar a poeira da reforma, Anabela acabou adoecendo por causa de uma forte crise alérgica. Para ela, a doença veio na hora certa. Por um tempo ela teria uma desculpa para não voltar mais ao teatro, sem ter de aborrecer o pai inventando alguma desculpa que talvez magoasse uma pessoa tão querida. Ela não quería, não sabia como contar o que estava acontecendo em sua vida nos últimos dias. Marcelo não precisava de mais uma preocupação.

Luciana fazia companhia a Anabela. Estudavam juntas, conversavam e, de vez em quando, acabavam falando de Clara, assunto que Anabela procurava evitar.

A alergia resistia aos remédios e cuidados. Marcelo levou a filha ao médico, que diagnosticou um princípio de pneumonia e recomendou que ela não voltasse ao teatro antes de dois meses, para que não fosse exposta à poeira e ao cheiro forte das tintas.

Anabela se sentiu aliviada. Poderia, enfim, encerrar aquele pesadelo. Um tempo sem ir ao teatro poderia deixar as coisas mais claras.

Os dois meses estavam por terminar e, quando Anabela já estava quase esquecendo o passado do Theatro José de Alencar, Marcelo chegou em casa muito nervoso. Remexeu seus papéis, plantas, livros antigos, fotos. Deu telefonemas, falou com inúmeras pessoas e não disfarçava sua angústia. Mal falou com a filha e aparentava um sofrimento muito raro de se notar nele.

Na hora do jantar, Anabela perguntou:

-Pai, aconteceu alguma coisa ruim? Marcelo passou as mãos no rosto, como se tentasse se

recompor para falar:

- Ainda não. Mas pode acontecer. Eu posso perder uma das maiores descobertas do restauro do teatro. Hoje derruba- ram uma parede falsa, por dentro do porão, e encontraram os restos de um Bösendorfer austríaco legítimo.

Ela desconfiou, mas não queria acreditar.

— Bose o quê?

Bösendorfer, um dos melhores pianos do mundo. Eu tenho quase certeza de que esse foi o primeiro piano da his- tória do teatro, mas ninguém acredita e eu não tenho como provar. Eu li algumas coisas sobre a escola de piano que fun- cionava lá, mas muitos documentos foram queimados em um incêndio dos anos 30. Se eu não provar que é legítimo, vamos perder a verba para restauração e o piano vai acabar jogado por aí em algum lugar, como entulho.

Marcelo suspirou e, antes de sair da mesa, disse uma frase que Anabela nunca ouviu ser proferida pelo pai: Acho que não vai ter jeito. Sem documentos eu não vou conseguir.

Isso doeu no coração de Anabela. Marcelo não imaginaria nunca que a solução para seu problema estava na sua frente. Anabela era a única pessoa que poderia ajudar... e de uma maneira um bocado dificil de entender.

Desde que seu pai começara a falar, ela teve certeza de que aquele era o piano de Elisabeth, em cujas teclas Gabriel aprendera a tocar. Ele poderia dizer tudo sobre o instrumento. Mas para chegar a isso, Anabela teria de contar ao pai que conversara com um fantasma, lera um diário que havia acom- panhado a construção do teatro, vira as reliquias de um baú antigo. Não havia provas de que Gabriel fora aluno de piano, já que ele estudava escondido. Ela precisava vencer a incredu. lidade do pai. E o pior: teria de voltar a procurar Clara e tentar descobrir onde encontrar Gabriel.

Naquela noite ela não dormiu. No meio da madrugada, quando foi buscar um copo de água na cozinha, viu o pai aflito, ainda procurando papéis, provas, fotos, alguma no- tícia sobre o piano. Ele não iria encontrar. Todo o arquivo da escola de Carlotta havia sido queimado naquele incêndio. Ela decidiu falar:

- Pai!

Marcelo se voltou para ela assustado: Anabela, você está bem? Está sentindo alguma coisa,

filha?

A BAILARINA FANTASMAOnde histórias criam vida. Descubra agora