DAS COISAS INFINITAS

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A FESTA

de reinauguração do teatro foi o fim de uma fase intensa e o início de uma vida nova para Marcelo e Anabela. O secretário da Cultura de São Paulo, impressionado com a perfeição da refor- ma do Theatro José de Alencar, visitou Fortaleza exclusivamente para entregar um convite: o Governo do Estado gostaria que Mar- celo coordenasse a reforma do Teatro Municipal de São Paulo.

Ele não pensou duas vezes. Aceitou, entusiasmado e assustado com o desafio. O trabalho começaria em duas semanas e duraria mais de dois anos. Marcelo e Anabela precisariam mudar de cidade em poucos dias.

Luciana ficou triste e feliz ao mesmo tempo. A primeira providência das duas amigas, depois de chorarem abraçadas, foi sonhar com uma viagem de Luciana a São Paulo. Plane- jaram todos os passeios, juraram cartas semanais e amizade eterna, mesmo a distância.

A mudança estava marcada para dali a duas semanas, muito pouco tempo para arrumar tudo, pedir transferência do colégio, encaixotar, organizar. Doía no coração deixar a Tra- vessa do Anjo, mas eles voltariam de quatro em quatro me- ses. Luciana e sua mãe se comprometeram a cuidar da casa e das plantas, sob as repetidas recomendações de Anabela:

-Não se esqueça de regar os miosótis!

Enfim, a mudança estava pronta. Mas ainda faltava uma coisa que Anabela não poderia deixar de fazer antes de ir embora: despedir-se de Clara. Ou ao menos tentar. Talvez ela já não estivesse mais no teatro. Ou não quisesse mais aparecer. É difícil entender como funciona o pensamento de um fantasma.

Anabela foi a pé, sozinha, despedindo-se de cada peda- cinho de chão, tão conhecido dela, tão testemunha de sua vida.

A cidade estava enfeitada para o Natal. Um coral cantava músicas natalinas em frente ao teatro. Anabela entrou. Subiu a escada em espiral e procurou por sua amiga no foyer, na passarela de ferro, e nada.

Desceu e pensou em desistir, ir embora, mas mudou de ideia quando ouviu o miado dos gatinhos que corriam para o poste de luz. Era Clara!

- Eu estava esperando você, Anabela! Tive medo de que você já tivesse viajado sem vir aqui. -E como você sabe que eu vou viajar?

Comunicação entre fantasmas. Ou você acha que no Teatro Municipal de São Paulo não tem nenhum? - Ah..., vai começar tudo de novo!

As duas riram muito e imaginaram os diversos tipos de fantasma que poderiam aparecer por lá. Clara contou algu- mas histórias assustadoras e Anabela jurou que não sairia correndo de nenhum deles, lembrando o medo que teve das primeiras aparições de Clara e de tudo o que viveram juntas.

Era bom demais rir com Clara depois de tudo, mas Anabela precisava ir embora:

-Eu tenho que ir, Clara, mas eu volto nas férias e venho te visitar.

-Eu não sei se estarei aqui, Anabela. Estou indo embora. - Você vai para o Lugar Melhor? -Se é assim que você chama, estou indo para o Lugar

Melhor, sim.

-E... você já sabe como é?

-O quê?

O Lugar Melhor.

Sei, eu estava lá até agora. Só voltei pra me despedir

de você.

- Você vai e vem quando quer?

Mais ou menos. Preciso de permissão. Só pude vir

hoje por sua causa.

- E por onde você passa daqui pra lá? Por ali.

Clara apontou para o palco. Sem pensar duas vezes, Ana- bela entrou na sala de espetáculos, caminhou pelo corredor e

não viu absolutamente nada além da pesada cortina de veludo vermelho, fechada.

-Obrigada por tudo, Anabela! Seja muito feliz! Se preci- sar de ajuda, pode me chamar. Sempre.

Foi dificil responder. O nó na garganta era tão apertado que não deixava nenhuma palavra passar. Ficou tudo preso no coração, mas Clara entendia e correspondeu a seu carinho com um abraço diáfano e luminoso.

O teatro inteiro foi banhado pela luz de Clara, ofuscando a vista de Anabela. Enquanto Clara andava para o palco, a corti- na vermelha e pesada desaparecia, dando lugar a uma cortina leve e clara de seda azul. Com um sopro do vento, o tecido se abriu pela metade.

Havia um jardim por trás da cortina. Parecia um cenário, mas era mais que isso. Não existia mais o fundo do palco; o campo e o céu daquele cenário eram reais e infinitos.

Clara foi recebida por sua família, que esperava perto da cortina. O fantasma da bailarina deu o último adeus, virou as costas e andou com eles pelo jardim, até sumir, definitiva- mente. O Lugar Melhor era ainda mais lindo que nos sonhos de Anabela.

Com outro sopro de vento, a cortina de seda azul voltou a se fechar, muito devagar. Anabela sentiu um aperto de sau dade no peito. Saudade de tanta coisa! Mas precisava ir... Pé ante pé, atravessou o tapete vermelho da sala de espetáculos, disposta a sair sem olhar para trás. Mudou de ideia quando ouviu seu nome:

- Anabela!

-Era Clara.

-Acho que ainda preciso te agradecer de verdade. Um vento ainda mais forte abriu completamente a cor- tina azul, e Clara fez sinal para que alguém viesse do lado de lá. Entre as plantas do lindo jardim, surgiu Melinda, mãe de Anabela, bonita e serena como a filha sempre imaginara durantes esses longos anos de saudade e recordação.

Melinda trazia no braço direito uma cesta enfeitada com miosótis. Dentro da cesta havia uma caixa de madeira cheia de pequenos pedaços de papel escritos em letra miúda.

- Eu recebo todos os seus bilhetes, minha filha. O Lugar Melhor fica mais perto do que você imagina.

Diante dos olhos molhados de Anabela, Melinda soprou- lhe um beijo. A cortina azul se fechou totalmente e voltou a ser a pesada e antiga cortina de veludo vermelho do Theatro José de Alencar.

Até aquele dia, Anabela acreditava que os mortos não voltam jamais. Mas agora ela sabe: eles voltam.

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A BAILARINA FANTASMAOnde histórias criam vida. Descubra agora