O LETREIRO

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GABRIEL

QUANDO

eu tocava para Clara dançar, a música soava mais bonita. Era mágico. Os movimentos dos seus pés, do corpo inteiro, a pos- tura daquela bailarina eram o que dava sentido a cada nota. A música existia no mundo unicamente para fazer Clara dançar.

Eu poderia ficar horas e horas tocando sem cansar os bra- ços, se ela estivesse ali, na minha frente. A música era nossa única forma de comunicação e cada minuto valia muito para nós. Não tínhamos muito tempo. As aulas duravam no máxi mo uma hora, duas vezes por semana.

A princípio eu não entendia o que estava acontecendo. Eu era muito jovem quando conheci Clara e nunca havia sido prevenido sobre os efeitos da paixão.

Por muito tempo eu não tive coragem de chegar perto dela em outro momento além do ensaio. O que eu diria? Vez ou outra eu conseguia perguntar alguma coisa boba, sobre onde estava dona Elisabeth ou se haveria aula no dia seguinte, e nada mais. Ela, muito tímida, também não dava o menor sinal de que desejava prolongar a conversa. Ficávamos ali, encerrados em oito ou dez palavras a cada encontro. Eu pe- gava cada palavra que ela dizia e guardava em um estojo de veludo na minha memória. Decorava o tom, o som, o jeito de falar. Sua voz era uma música que nenhum instrumento era capaz de reproduzir. Eu, apaixonado, tentava imaginar milhões de significados por trás de qualquer coisa que ela dissesse.

De alguma forma inexplicável, eu sabia o que se passava em seu coração. Percebia pelos gestos e pelo olhar de Clara como estava o seu estado de espírito naquele dia. Se eu qui- sesse alegrá-la, bastava sugerir uma música do seu agrado para o ensaio, ou tocar algumas notas de Mozart durante os intervalos. Ela adorava Mozart! E eu, eu adorava ganhar um sorriso de canto de boca, quase imperceptível, mas que acendia meu coração.

Fazendo as contas, foram mais de cinco anos assim, conversando pela música, com a música, por causa da música. E entre nós o amor crescendo praticamente em silêncio. Porque não havia outra forma de vivermos aquela paixão naquele momento.

Meu maior desespero era o medo de que meu pai des- cobrisse as aulas de piano. Isso acabaria com tudo. Se meu inglés fluía cada vez melhor, era mérito dos olhos de Clara. Por eles eu estudaria horas seguidas para não correr o menor risco de deixar de vê-la. Percebendo o progresso, meu pai não pensaria em suspender as aulas com dona Elisabeth. Vez ou outra ele recebia convidados estrangeiros para me ouvir falar, o que não era costume, pois ele detestava receber pessoas em casa e só fazia isso para me testar. Felizmente, sempre tive sorte e consegui me sair bem.

Era questão de tempo. Quando chegasse a idade, eu iria embora. E isso era meu maior desespero. Estudar na Europa não era um plano meu; era o sonho do meu pai, que recebi de herança e agora precisava realizar, para ele e por ele. A minha felicidade estava nas teclas do piano e nos braços de Clara.

O progresso no inglés era um perigo. Meu pai chegou a dizer que talvez suspendesse as aulas. Contela dona Elisabeth e ela me perguntou se eu não gostaria de aprender francés, Claro que sim! Naquele momento eu gostaria de qualquer coisa que me prometesse alguns momentos a mais perto de Clara. Persuadido por dona Elisabeth, que ressaltou as inú meras possibilidades de estudo complementares de medicina na França, meu pai incluiu as aulas de francês no meu cardá pio de felicidade. Assim pude preencher a semana e passei a ir ao teatro todas as tardes.

Desde os nossos doze anos de idade, eu via Clara diaria- mente. Ano após ano, ela mudava. Sua beleza de anjo deu lugar a um corpo de deusa. Cresceu. Crescemos juntos. Era linda, sempre linda, todos os dias e cada vez mais.

Depois de anos de amor em silêncio, a música já não bastava como meio de comunicação. Precisavamos conversar. Eu precisava ter certeza de que ela dizia o que eu pensava que dizia a cada olhar. Seu sorriso tímido estava mesmo me achando bonito? Seu olhar carinhoso pedia mesmo que eu não fosse embora? Será que ela gostava mesmo de mim?

Falar, diretamente, eu não teria coragem. Se nosso amor dependesse disso, estaria condenado a nunca acontecer além dos nossos pensamentos, e isso eu não poderia suportar. Por- que eu sonhava, todos os dias, com o que aconteceria quando tudo aquilo que vivíamos há tantos anos fosse transformado em palavras. Palavras! Ora, era isso! As palavras não poderiam ser faladas, mas por que eu não as escrevia? Por que nunca entreguei a ela uma das longas cartas onde eu depositava minhas noites sem sono?

Tive essa ideia em uma das primeiras manhãs de junho. Em mais alguns dias ela completaria quinze anos de beleza. a ocasião ideal para receber a certeza do meu amor de presente. Escrevi um bilhete com uma proposta arriscada: pedi que

ela fosse à letra "C" do grande letreiro com o nome do teatro, junto aos vitrais coloridos, às seis em ponto. Vi quando ela atravessou a passarela de ferro entre o foyer e a sala de espe- táculos. E vi seu rosto, colorido e espantado, quando retirou a carta que deixei junto à letra.

No dia seguinte, fui eu que achei um bilhete entre as teclas do piano. Clara me pedia que fosse à primeira letra "A", e lá estava sua carta.

Brincamos de carta no letreiro por muito tempo sem que ninguém desconfiasse. Não precisávamos mais anunciar que havia uma mensagem: nós já sabíamos que todos os dias, às seis da tarde, a resposta do día anterior estaria em uma das letras.

Eu sabia exatamente a sua rota. Ela subia pela escada esquerda, pegava o bilhete e descia pela direita. Houve uma tarde em que eu a esperei escondido no segundo lance da escada do lado direito, por onde ela passou correndo e, sem esperar, encontrou meu abraço no meio do caminho. Não era preciso dizer mais nada, porque já sabíamos o que precisáva mos saber - agora tudo o que eu queria era ter aquele sorriso para mim dentro de um beijo. Rápido, secreto, escondido. O primeiro beijo do nosso amor.

Não há um só lugar daquele teatro que não tenha a nossa marca. Cada rosto pintado ou esculpido no teto, nos detalhes de ferro, cada um era testemunha de nosso amor secreto. Buscávamos esconderijos para deixar bilhetes, ou para uma conversa rápida e feliz.

Um dia, encorajado pelas estrelas, decidi fazer o que minha timidez nunca permitiu: beijei os lábios de Clara pela primeira vez. Repetidas vezes. Seu rosto, suas mãos, seus olhos. Cobri Clara de beijos, que ela aceitou, feliz como sem- pre, confirmando o amor que seus olhos nunca esconderam.

Quando tínhamos um pouco mais de tempo para conver- sar, brincávamos de imaginar que nos casaríamos ali mesmo, no palco. Ela entraria pela plateia, de branco, e eu estaria no palco tocando piano. O padre e o juiz confirmariam o que nós dois já sabíamos desde sempre: seríamos felizes para sempre.

O teatro era o nosso castelo e Clara era minha rainha. E toda nossa juventude aconteceu ali.

Houve um dia em que subimos no terraço do foyer para ver a cidade anoitecendo. Ficamos tanto tempo lá em cima que perdemos a noção das horas. Era lindo ver as copas das árvores do alto, o coreto da praça. Clara gostava de fazer de conta que conversava com as estátuas das damas que ficavam ali. Ela dizia que, depois da meia-noite, elas sairiam do lugar e passeariam um pouco. Ou deitariam para descansar, quem sabe? Não deve ser fácil passar o dia em pé.

Dentro de Clara existia uma fonte de alegria que nunca secava. De seu sorriso sempre escapava uma piada, uma brincadeira ou uma forma feliz de ver o mundo. Ela me dava a chance de sorrir e perceber que a vida pode ser alegre. Os dias de Clara eram uma sucessão de pequenas felicidades, uma depois da outra, de manhã, à tarde e à noite, e eu fui aprendendo a ser assim.

Aquele dia, no foyer, foi um dos mais lindos da minha vida com Clara. Fomos inocentes ao nos expor tanto. Mas nunca imaginávamos que seria o começo do fim.

Brincamos, dançamos e falamos de amor enquanto a noite

chegava aos poucos e cobria o mundo com seu manto escuro. Já o nosso amor, apesar de tudo, esse nunca anoitecia. Ter Clara nos braços era luz permanente no meu coração. Clara era meu sol. Sempre foi. Sempre será.

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A BAILARINA FANTASMAOnde histórias criam vida. Descubra agora