PALCO

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A FRIEZA

e o silêncio do pai não enganavam Gabriel. Ele temia que algo de muito ruim acontecesse e infelizmente seus temores tinham fundamento.

Clara também não tinha bons pressentimentos. Sua fami-

lia, que já sabia sobre o envolvimento com Gabriel, obviamente

se preocupou junto com ela. Clara já não era uma menina.

Maria Rosa vivia dias de muita angústia. A suspeita de hanseníase do pai era algo grave demais para ela. Era uma situação muito dificil porque não encontravam uma maneira de obter um diagnóstico preciso. Enquanto isso, esperando uma melhora, ele seguia escondido no porão de teatro.

Parecia uma viagem no tempo. Maria Rosa voltara a levar a alimentação do pai todos os dias, quando via Clara e Gabriel namorando exatamente nos mesmos lugares onde ela namo- rava com Joseph havia mais de vinte anos. A vida dá voltas.

Ela gostaria de que a filha tivesse a mesma sorte no amor. Sua intuição de mãe lhe dizia que Gabriel era o homem certo para Clara. Mas a mesma intuição avisava que as coisas não seriam nada fáceis.

Carlotta, além da preocupação de tia, temia muito por seu espetáculo, que estava cada dia mais próximo. O plano de ter Gabriel como pianista poderia estar em risco. Clara não dan- çava mais da mesma forma e ela não sabia se lhe chamava a atenção ou se a consolava.

Se um dos motivos de angústia era a dúvida sobre o que o Dr. Augusto faria, ao menos isso durou pouco. Da forma mais brusca e fria possível, o pai de Gabriel comunicou ao filho o que estava decidido para ele:

-Amanhã você partirá para o Rio de Janeiro. Ficará na casa de seus tios até agosto do ano que vem, quando partirá para a Inglaterra. D. Marilourdes já comprou uma mala com roupas novas. Você já está matriculado em um curso de inglés no Rio de Janeiro. O que você fará da sua vida nas próximas horas não me importa. Mas na sexta-feira, às dez da manhã, você estará no mar. Disso eu tenho certeza.

Angélica não podia acreditar que Augusto havia tomado a decisão de afastar Gabriel antes do tempo previsto sem sequer lhe comunicar. Tentou segurar a mão do filho, fazer alguma coisa, mas Gabriel estava descontrolado:

-E se eu não quiser ir, meu pai? O senhor vai me prender? Vai me bater, me levar amarrado? Pois é só o que falta

fazer comigo. Mantendo a frieza inabalável, Dr. Arruda respondeu olhando nos olhos do filho:

-Se você não quiser ir, Gabriel, eu denuncio às autori- dades competentes a presença de um portador de hanseníase nas dependências do teatro. Imediatamente ele será levado para longe daqui e talvez a orientação de tratamento seja cruel demais para que ele suporte. Certamente o teatro vai ter de fechar as portas por tempo indeterminado. Nada de aulas de piano ou daqueles rodopios inúteis que as escocesas chamam de arte. Não sei por quanto tempo ficaria fechado. Talvez um ano, ou dois... O suficiente para que aqueles estrangeiros resolvam voltar para o lugar deles.

- Você não teria coragem de fazer isso, Augusto! - dis. se Angélica, profundamente decepcionada ao descobrir um marido que não conhecia.

Dr. Augusto mostrou uma carta, escrita e assinada por ele, com todos os detalhes do caso.

-Do que eu não teria coragem era de deixar que meu filho único perdesse a oportunidade de ser um médico forma- do na Europa para ser um tocador de piano em um teatrinho de província. Vendi todos os imóveis que recebi de herança e trabalhei todos esses anos para dar ao meu filho o que eu não pude ter. Eu prefiro morrer a ver um filho meu em um palco de teatro como artista.

-A mim, meu pai, o senhor não faria a menor falta. Gabriel saiu de casa totalmente transtornado e foi direto para o teatro. Era hora de ensaio. Clara, Elisabeth e Carlotta estavam no foyer e ele contou o que acontecera.

O ensaio foi interrompido e Gabriel pediu para ficar a sós com a namorada.

- Clara, eu tenho que ir. Se seu avô for denunciado, ele pode sofrer muito, o teatro vai parar, a escola de balé vai fechar. O espetáculo de Carlotta, meu Deus, está tudo em mi- nhas mãos!

-E nós, Gabriel?

Eu vou voltar, Clara. Logo que seu avó melhorar, eu volto. A dona Elisabeth não disse que pediu ajuda a médicos do Rio de Janeiro? Isso pode demorar, mas vai dar certo, sim!

Clara e Gabriel não voltaram para casa naquela noite. As duas famílias sabiam exatamente onde eles estavam e não fizeram nada que pudesse atrapalhar aquela triste despedi da. Os dois passaram a noite juntos. Dormiram no palco do teatro, abraçados, fazendo juras de amor e prometendo a vida um ao outro.

Gabriel prometeu escrever uma carta por dia para ela.

Clara riu, pois isso seria dificil de manter. Então combina- ram uma carta por semana. Ele escreveria para o endereço do teatro e colocaria como destinatária a escola de Carlotta. Assim não levantaria a menor suspeita.

Antes da despedida, Gabriel olhou nos olhos de Clara

e fez uma promessa:

-Antes do espetáculo eu estarei aqui. Eu te prometo, Clara, que eu vou fazer de tudo para voltar. Vou trabalhar para comprar as passagens, buscarei informações para curar seu avo. Eu vou lutar por nós, Clara!

- Você promete mesmo que volta? -A única certeza que tenho na vida é de que vou voltar.

Eu vou tocar o pas-de-deux do Quebra-Nozes neste palco para

você dançar. Vai ser o dia mais feliz das nossas vidas! Clara e Gabriel dormiram no palco do teatro. Na manhã seguinte, ele partiu.

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A BAILARINA FANTASMAOnde histórias criam vida. Descubra agora