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A sala de espera do hospital estava quieta, apenas Thiago e uma outra senhora ocupavam as cadeiras. Enquanto o lado esquerdo da sala, dava visão a avenida movimentada. Do lado direito um enorme balcão separava o ambiente em dois, haviam duas enfermeiras, que pareciam enlouquecidas com inúmeras folhas, que se espalhavam por toda a bancada.
Aquela tarde de Domingo estava bastante chuvosa. Ele precisou manter o limites de velocidade durante todo seu trajeto, que de vinte minutos, resultou-se em uma corrida de quase uma hora.
Era sua primeira vez visitando uma área de oncologia, estava bastante nervoso.

Thiago estava na casa dos trinta, e sua aparência era de alguém mais velho, pelo simples fato de toda sua cabeça estar grisalha prematuramente. Era de estatura média e possuía um físico magro. Adorava suas caminhadas matinais e se esforçava ao máximo para ter uma alimentação saudável. Porém seu vício por cigarros era um enorme empecilho.
Estava casado a oito anos com um famoso escritor de suspense internacional. Um português de trinta e seis anos, com todos os fios castanhos de cabelo em sua cabeça. Thiago e Emanuel se conheceram em um evento beneficente, que sua mãe havia organizado. E o português, de um metro e noventa, com rosto afilado e olhar penetrante chamou sua atenção. Ficou bem satisfeito em saber que, não passava de um rosto bonito. As vezes enquanto se pega vasculhando o passado, lembra das primeiras discussões que teve com o futuro cônjuge. Debates sérios sobre autores superestimados, e sobre a elitização a cerca da literatura. Sempre acreditou que a leitura deveria ser algo comum, como um filme ou uma música, de fácil acesso para todos. E tinha receio que no futuro acabasse virando algo cult, ou exclusivo de uma só classe social.

-Thiago?- chamou a enfermeira. Fazendo o mesmo desviar a atenção da televisão, que exibia um programa culinário.
-Ele acordou?- perguntou com certa ansiedade. Ele se levantou e caminhou até o balcão, a senhora continuou sentada, lendo uma revista de fofocas qualquer. Em resposta a sua pergunta, a enfermeira que se chamava Jéssica, apenas balançou a cabeça. A mesma abriu uma gaveta e destacou uma pulseira amarela descartável.
-me dê seu braço- pediu com certo cansaço, como se estivesse no modo automático. Thiago ergueu o braço em sua direção, e a pulseira foi colocada com praticidade. -preciso que assine aqui- uma prancheta foi entregue por ela, e com uma caneta, indicou o lugar da assinatura. -qualquer acontecimento estranho, me chame- ela orientou, mas com os olhos no monitor. -sem toques muito longos no paciente, ele está bem debilitado. Se ele pedir qualquer coisa, me avise- Ela pegou a prancheta assim que Thiago assinou sem fazer nenhum contato visual.

O quarto 86 era o penúltimo do lado direto naquele imenso corredor. Ele  caminhou lentamente e com bastante apreensão, com uma sensação de fraqueza atingindo suas pernas. Estava bem iluminado e silêncio o corredor, e de alguma forma, lhe parecia quase irreal, como um sonho em que o corredor não tivesse um fim.
Ocorreu um pensamento sujo, que infelizmente não conseguia afastar da mente. O simples fato, que um ambiente externo limpo, tem efeito quase nulo, naqueles pacientes que não estavam limpos por dentro. O câncer era, como a maioria das pessoas denominavam "assassino silêncio", e fazia um certo sentido. Porém a artimanha dessa doença, era seu serviço gratuito.
Quando finalmente chegou a porta, percebeu que o número 86, que ficava na altura do seu rosto, estava um pouco desgastado. Esse pequeno detalhe lhe fez sentir um arrepio na nuca, sem motivo algum. Reuniu as últimas forças, respirou fundo e entrou antes que a coragem sumisse.
Olhar aquele corpo moribundo, estirado na cama hospitalar, fez Thiago se sentir sujo. Precisou descolar os pés do chão, pra só assim, conseguir adentrar por completo no quarto.
Era um cômodo pequeno, apenas com uma janela alta, que permitia a entrada de luz solar. Haviam inúmeros aparelho acoplados a cama. Era difícil discernir, qual a função de cada, e quais estavam conectados ao corpo.
Thiago reconheceu o aparelho que mostrava os batimentos cardíacos, que estavam baixos, e outros sinais em um pequeno televisor.
Do lado esquerdo da cama, próximo a janela. Havia um jarro branco com flores claras e de aparência morta, alguém precisava realizar a troca. Junto ao jarro, um pequeno frasco, que parecia ser daqueles com suplementos vitalícios, estava do lado, completando a decoração. Do lado direito se encontrava um carrinho de parada, que Thiago reconheceu, por ser um fã fiel de um seriado de médicos. Ele abandonou o show por volta da sexta temporada, quando percebeu que os personagens, que eram médicos estavam morrendo mais rápido, que os próprios pacientes. O carrinho servia como suporte rápido, caso o paciente sofresse uma piora drástica, na maioria dos casos, parada cardíaca.
Quem olhasse para aquele corpo, diria que estava morto, ou muito perto disso, e era uma verdade. A cor da pele original havia sumido, dando lugar ao pálido e amarelo tom, que brilhava, parecendo pegajoso. A cabeça continha poucos e ralos fios de cabelo, de um cinza fantasmagórico. Enormes olheiras contornavam os olhos fundos e opacos, e estavam abertos, fitando o teto.
Thiago ficou do lado direito da cama, com braços cruzados e olhar que demonstrava uma certa pena, repulsa e raiva. O corpo não se moveu, e continuou fitando o alto. Ele pensou nesse instante, já bem próximo, em forçar uma tosse para chamar atenção. Mas não foi preciso.

-você veio-sussurrou o homem deitado. As palavras pareciam sair com certa dificuldade.
-eu vim- respondeu Thiago. Percebendo que sua garganta estava bastante seca.  Olhou em volta e não encontrou um jarro de água, ou mesmo uma garrafa. Logo,  balançou a cabeça, tentaria demorar o mínimo naquele quarto.
-você pode sentar se quiser Thiago- sugeriu o homem com sua voz rouca e baixa. Lentamente, virou a cabeça de lado, até encontrar os olhos da sua visita. E aquele simples movimento lhe causou dor.
-muito obrigado, mas...eu acho que não posso demorar muito- Thiago abraçou com força seu próprio corpo. -tenho que voltar pra casa antes que a chuva aperte de novo sabe- mentiu.
-você ainda se lembra do meu nome?- o homem fez uma careta ao perguntar. Talvez querendo formar um sorriso ao fim de sua fala, mas falhando consideravelmente.
-claro sim Cristiano, me desculpa- respondeu Thiago nervoso e desviou o olhar até a janela -isso tá sendo mais impactante do que eu achei que seria.
-eu sei, sinto muito por ter te chamado- Cristiano tossiu -mas eu precisava, minha consciência não estaria totalmente limpa sabe.
Thiago sentiu o coração apertar, e sem razão qualquer, apenas por ver aquele homem na situação que estava, lhe causava uma tristeza profunda. E isso era ruim.
Cristiano era, o popularmente conhecido, como o cara descolado da escola Raul Coelho de Alencar. Capitão do time de Futsal, era acompanhado por uma tropa de garotos que clamavam por sua atenção. Namorava a garota mais linda e inteligente, Samanta. Sempre passava, em todas as matérias mesmo estando abaixo da média. Pois os professores adoravam o filho do advogado respeitado da cidade.
Ambos haviam feito juntos o ensino médio, mesmo turno, mesma turma. Thiago tinha memórias horríveis do tempo em que estudou ali. Todos os seus traumas e inseguranças foram acentuados, e boa parte por conta do homem que se encontra a pouco metros, prostrado em uma cama de hospital.
Acerca de uma semana. Ele recebeu uma mensagem de texto, escrita pela irmã de Cristiano. Explicava com detalhes toda a situação com o irmão. Câncer no pulmão, já no terceiro estágio, onde a parede torácica e outros órgão já estavam afetados. O diagnóstico foi tardio, pois seu irmão, teimoso e orgulhoso se recusava ir ao hospital, dizendo que não passava de uma dor qualquer e que logo passaria. Seu pai, irmã e alguns outros familiares, optaram pela internação compulsória. Que ela descreveu como sendo um período bem difícil.
A irmã relatou, que o médico indicou um prazo de apenas um mês de vida, e que só estava escrevendo a mensagem, a pedido do mesmo. Uma semana antes, o irmão resolveu chamar todas as pessoas, para uma sessão de desculpas e despedidas. E falou que se tratava de um colega distante.
Thiago não sabia como tinha aceitado aquele convite. Sendo que a cada palavra lida daquela mensagem, ele sentia um prazer enorme em saber que a justiça estava sendo feita. Chegou a contar pro marido com certa empolgação, e até os cigarros foram esquecidos naquele dia.
Agora estava na maldita sala 86, olhando para figura cadavérica, do homem que mais odiou na adolescência.
-estou aqui, sou todo seu- disse Thiago levantando as mãos, em forma de rendição. Estava olhando novamente para aqueles olhos castanhos e opacos.
-oque você está fazendo atualmente?- Cristiano perguntou e analisou as roupas do seu visitante. Casaco preto de gola alta, calça marrom e justa, sapatos sociais bem engraxados e o cabelo grisalho bem penteado. -você tá parecendo um ator de novela, bem diferente da época da escola- sorriu.
-vou considerar um elogio, mesmo vindo de você- respondeu Thiago com leve sorriso. Seus ombros relaxaram -me formei em jornalismo. Hoje eu trabalho na Globo, sou um redator do jornal das 11, o oque passa no almoço, basicamente eu escrevo as notícias que o apresentador fala- completou sem desviar o olhar. Não gostava muito quando as pessoas lhe perguntavam sobre trabalho. Mas naquele caso, ele estava tentando esfregar na cara a sua conquista.
O rosto de Cristiano se manteve impassível. Era difícil descobrir suas emoções e reações sobre qualquer coisa. Seu rosto apenas demonstrava cansaço.
-meus parabéns- a voz saiu um pouco mais alta.
-muito obrigado- Thiago sorriu nervoso -seria meio indelicado perguntar onde você trabalhava antes de estar aqui ?- era a única pergunta que conseguiu elaborar. E pensando bem, analisando o estado que aquele homem se encontrava, não faria diferença nenhuma.
-que nada. Eu não cheguei a fazer nenhuma faculdade e resolvi abrir uma loja- Cristiano tossiu, e dessa vez demorou um pouco mais -materiais de construção.
-interessante- respondeu Thiago.

Quarto 86Onde histórias criam vida. Descubra agora