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A caminhonete andava sem rumo pelas ruas naquela noite, não tão perdido quanto ao condutor que segurava, com apenas uma mão o volante. A outra mão estava ocupada, segurando uma garrafa de cerveja quente. No rádio uma música qualquer tocava, uma nova dupla sertaneja, tentando alcançar o sucesso. Talvez fosse mais barato testar as músicas desconhecidas, dependendo do horário.
Cristiano havia passado a noite passada em claro, seus olhos fundos provaram, assim como a pele oleosa e o cabelo bagunçado. O dia se demorou a passar, ficou trancado em seu quarto, sem vontade alguma de comer ou fazer qualquer atividade. Se sentia feio e velho, sua cabeça não aceitava de forma alguma a rejeição. E para surpresa de ninguém, os pais não notaram, ou não fingiram demência para o comportamento estranho do filho.
Com apenas uma ligação, Samanta havia conseguido feri-lo com tanta profundidade, tal qual alguém que é esfaqueado. Ele tinha ódio, por vários motivos, repassava várias e várias vez o telefonema. Raiva, pois desde que se tornou um adolescente, tinha prometido a se mesmo, que construiria uma família perfeita. Que seria melhor em tudo que os pais, que daria a atenção necessária e precisa pros seus filhos. Não deixaria por nada de dizer "eu te amo", frase que nem se lembrava de ter ouvido algum dia, se é que chegou a ouvir.
Ela tinha acabado com seu sonho, com seu futuro. Pensou em assassiná-la, fazer picadinhos da ex namorada putinha, imaginou todas as formas possíveis. Mas como todos os pensamentos sujos dele, sempre ficavam apenas guardados na sua  mente insana.
No início da noite do dia seguinte, tinha resolvido ir até a casa dela. Afinal de contas, por telefone, ela poderia estar sendo coagida a falar aquelas palavras. E se aquilo tudo fosse uma mentira ? ele sabia que não.
A caminhonete era do seu pai, que tinha mais dois carros na garagem, não se importava que o filho pegasse o carro, contanto que trouxesse inteiro. Percebeu que estava quase saindo de Monte Cruz, havia subido uma longa pista íngreme até as montanhas. Um motorista de caminhão buzinou, e xingou várias vezes, precisando jogar o veículo no acostamento para não bater em Cristiano, que seguiu em frente sem dar nenhum sinal de preocupação.
As onze da noite, sem motivo aparente, ele jogou a caminhonete, primeiro para esquerda, depois para direita quase acertando uma árvore. Estava na entrada de uma estrada de pedra que levava até a famosa cachoeira da cidade. Era um lugar onde muitos jovens vinham nas férias, faziam competições de pulo e a droga rolava solta. Ele gostava quando a polícia aparecia do nada, sem as sirenes ligadas, a correria era grande de garotos de sunga, e garotas de biquíni.
Cristiano desceu do carro, sem se dar o trabalho de tirar a chave da ignição, o mundo parecia girar na frente dos seus olhos. Quando pisou os pés na estrada de pedra, precisou se inclinar pra frente, e apoiar as mãos nos joelhos, pois toda a água que tinha bebido foi colocada pra fora. O vômito durou por poucos segundos, e quando se ergueu novamente, se sentia menos tonto.
Seus olhos estavam se acostumando a escuridão noturna, Quando algo chamou sua atenção. A poucos metros, estrada adentro, estava uma motocicleta bem conhecida, recostada em uma árvore. Ele conhecia muito bem o dono, mas não havia ninguém próximo ao veículo.
O seu típico sorriso maligno começou a surgir. O primeiro pensamento foi, o goleiro do meu time tá comendo uma garota, e ele não teve a cara de pau de contar pros amigos?, o segundo por que ele estaria tão escondido assim com uma garota?, e o terceiro e pior pensamento como ele pode estar feliz pegando alguém no momento que estou sofrendo. Simplesmente sem nexo algum, mas com bastante sentido em sua cabeça, Cristiano criou uma raiva por Natanael, se sentiu apunhalado pelo amigo de time. A raiva ia passeando pela suas veias, esquentando seu sangue. Instantaneamente a tontura pareceu quase inexistente, ele respirou fundo e seguiu o único barulho existente naquele lugar. O barulho da cachoeira.
Conforme se aproximava, a floresta ficava mais densa, o matagal seco começava a rodeá-lo até altura do joelho, o vento estava calmo, apenas uma leve brisa de verão. Não precisou ser nenhum detetive, ali estava seu amigo, era fácil encontrar um cara tão alto. Natanael estava de costas pra ele, sem camisa, sua pele escura brilhava a luz da lua. Haviam dois braços pequenos em volta do pescoço dele. Mas quem era aquela garota?.
Cristiano começou a rodear lentamente pela floresta, tomando o máximo de cuidado que sua sobriedade permitia. Olhou mais uma vez, agora via que a garota usava um macacão e tinha cabelos curtos, até ombro, era difícil reconhecer na escuridão, estando um pouco distante e bêbado.

-você ouviu isso?- a garota perguntou. Tinha interrompido o beijo com Natanael, os dois olhavam em volta, inclusive na direção dele.
Cristiano quase pulou de onde estava. Não era uma garota, era um menino, a voz. Ele viu o rosto e reconheceu. Uma grande repulsa e nojo instantaneamente apareceram em seu semblante. Se sentiu sujo, como se tivesse assistido a maior atrocidade da sua vida.
Tinha perdido as contas, quantas garotas chegavam até ele, perguntando se Natanael estava namorando, o mesmo sempre recusava. Cristiano odiava por não ser considerado a primeira opção, e depois ficava até feliz, pois a concorrência era baixada drasticamente. Quando o sua aversão atingiu o nível do ódio, ele rompeu de dentro das árvores e do matagal, aparecendo para os dois que recuaram com um susto.
-olha só oque temos aqui- ele anunciou erguendo as mãos com entusiasmo.
-oque você tá fazendo aqui Cris?- perguntou Natanael tomando a frente.
-eu vim admirar os pombinhos, é proibido agora ?.
-tá você já viu, cai fora.
-Nat, Nat, Nat, quem diria meu amigo, um veado, vindo de você?.
-é isso, totalmente veado, vai querer participar ?- Natanael perguntou com um sorriso no rosto. Aquilo foi suficiente pra que Cristiano de aproximasse mais, sua raiva aumentava gradualmente. Qualquer que fosse a circunstâncias, ele temia o jovem a sua frente. Todos na escola, até na cidade amavam o melhor goleiro de futebol que o Raul Coelho de Alencar havia tido nos últimos anos. Ele focou em Thiago, que estava se tremendo da cabeça aos pés, escondido atrás do namoradinho.
-a putinha marica só vai ficar se escondendo?, não vai falar nada, deve tá com a boca cansada de tanto chupar pau ein?- o sorriso sujo de Cristiano parecia mais uma careta. Ele tentou contornar, quase tropeçando, seu amigo e se aproximar da presa menor.
-você andou bebendo pelo visto- bufou Natanael catando sua blusa de botão florida do chão.
-e você andou fazendo coisa pior não é amigo?.
Thiago estava totalmente fora de vista, escondido por trás do corpo de Natanael, suas pernas pareciam palitos batendo uma na outra. Seus punhos estavam cerrados, e as pequenas e cortadas unhas iam perfurando a pele da palma da mão. Tanto o medo quanto a raiva, assim como a floresta, o cercavam.
-olha pra mim, fala comigo veadinho, eu não vou te machucar- a voz asquerosa de Cristiano causava um arrepio involuntário no mais novo.
-olha pra mim Cris, você não tá legal, você tá bêbado e nem sei como você chegou até aqui vivo- Natanael se aproximou lentamente.
-estou perfeitamente bem- esbravejou erguendo os braços e com um sorriso distorcido no rosto. Lembrando um palhaço de baixo orçamento.
-vem aqui, deixa eu te levar pra casa- Natanael estendeu o braço direito -você precisa de um banho e talvez uma semana de sano.
E lá estava, o sorriso de compreensão, a fala passiva e acolhedora. Quem ele achava que era, a minha mãe? Cristiano pensou.
-como sempre tentando ser gentil com as pessoas, sabe de uma coisa Natanael- ele quase vomitou o nome -acho que depois que, as pessoas descobrirem oque você anda fazendo aqui na cachoeira, elas não vão te admirar, eu mal posso esperar. Sabe, eu até respeitava você, quer dizer, eu amava você. Mesmo você sendo do jeito que é.
-jeito?.
-sabe do que eu tô falando, a cor da sua pele, não vamos fingir o óbvio né?. Suas notas são as melhores, em comparação com qualquer um do time. É popular com as garotas, na verdade com todo mundo. Só por causa disso, eu tolerei, sacrifique minha reputação me aproximando de você.
-acho que já deu por hoje...
-não. Você acabou de entrar no inferno, seu preto veadinho imundo.
Thiago precisou de quatro passos, e ficou ao lado de Natanael.
-sinto pena quando olho pra você- ele gaguejou -talvez, na verdade, eu tenho certeza, que você nunca, nunca, vai sentir o quão bom é ser amado de verdade. Entendo seu ódio, sua inveja, sua vontade em estragar aquilo que você vai ter. Eu também ficaria assim se não tivesse a chance de ter oque estou tendo agora com quem eu amo. Não vai adiantar de nada xingar, berrar, ser ofensivo, só mostra o quão podre você é.
Cristiano estava com olhar diabólico, seu rosto ficou vermelho. Seus pensamentos estavam em confusão, latejando contra seu crânio, era uma dor terrível. Ele salivou como uma besta, que a dias está sem comer e avista um coelho suculento. Sem aviso prévio, ele avançou na direção de Thiago.
Aconteceu rápido, a escuridão fazia tudo parecer um borrão. Natanael havia pulado na frente do mais novo, impedindo o ataque, agora estava embolado no chão de pedras. Cristiano por cima, como um maníaco, disferia golpes contra, entre socos e tapas, contra o peito e rosto do moreno.
Não demorou muito para que os papéis se invertessem e Natanael estava por cima agora, de quatro sobre o corpo descontrolado de Cristiano. Thiago estava em pé, processando a situação, sem conseguir reagir. Sentia o coração bater com tanta força, suas mãos estavam suadas e seu cabelo colado na testa.
-vai pra casa, eu cuido ele- Natanael olhou pra ele, ainda na posição de cachorro. Seu rosto moreno iluminado por gatinhas de suor. Sua blusa florida estava aberta.
-tem certeza Nat- Thiago sussurrou.
-vai logo, prometo que vou compensar no próximo encontro- um sorriso, aquele lindo sorriso que parecia dizer, ei, confia em mim, vai ficar tudo bem.
Thiago acenou com a cabeça, virou-se e correu pela estrada de pedra, até a rodovia íngreme, até sua casa.
Dois dias depois, o corpo de Natanael foi encontrado sem vida, perto das pedras onde a cachoeira corria sem parar.


Quarto 86Onde histórias criam vida. Descubra agora