Capítulo 6 - casa

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Pela primeira vez em todos esses dias que se estenderam, não acordei atônita. Na real, estava tão confortável ao acordar torta em cima do colchão, que podia dormir o resto do dia pra equilibrar o tanto de tempo que precisava descansar.
Mas não foi possível, assim que fechei os olhos senti meu celular vibrar. O desgraçado se recusava a desligar mesmo com 5% de bateria, e pra melhorar era a minha mãe.
Procurei os óculos, não me lembrava de ter tirado eles, coloquei na mesma hora que senti meus dedos passarem no metal da alça.
Atendi ainda com a voz rouca e esperei ela falar a primeira palavra

ㅡVocê demorou muito para atender, onde você esta agora?ㅡ Ouvir sua voz fez eu me arrepiar. Era estranho a forma que eu temia ela.

Não é como se a gente se aranhasse muito, eu evitava ela e ela me evitava, mas isso agora que eu sou adulta. Quando eu era criança, vivia em uma prisão, não podia sair para nada nem mesmo se fosse na frente de casa. Em vez disso, tinha que fazer todas as coisas em casa que ela não gostava ou que meu irmão bagunçava.
E como eu iria reclamar, ele tinha autismo, ele era incapaz de me ajudar com isso por vontade própria.
A minha mãe me dava medo, como se ela fosse uma criatura caótica que ficasse olhando na fresta da porta.
Nem sempre foi assim, mas eu nunca fui a princesa dela.

ㅡÉ...não importa muito. O que foi?ㅡ Falei me lembrando que eu não quero que ela saiba onde estou. Da ultima vez ela fez um barraco.

ㅡPreciso que você passe aqui, temos que conversarㅡ Meu corpo gelou.

A ligação ficou em silêncio por alguns segundos

ㅡVenha sozinha, sem seus amigos intrometidosㅡ Ela concluiu e assim a chamada caiu.

Eu não quero ir.
Mas pensar no que seria se eu não fosse me deixava mais preocupada ainda.
Quer dizer, eu não moro aqui, eu vou ter que deixar a casa dos meninos em algum momento com toda certeza.
Acho que tenho que começar a me entender com a minha mãe, pelo menos até ter grana pra sair de casa.
Me levantei ainda tonta, não tinha ninguém no quarto e nem fora.
Me aproximei da cozinha pra ver se achava algo para comer rápido antes de ir pra casa, tinha um bilhete em cima do balcão com uma caligrafia um pouco torta.

"Opa, se tá lendo isso é porque não chegamos ainda.
Clara foi comprar coisa pra gente comer, o Vitor quis ir junto porque quer comprar coisa de caça (???) e eu preciso ir pra ajudar a levar as coisas.
Sinta se em casa,
Hades"

Bem, se eles foram comprar coisas é porque não tinha sobrado nada.
Dei de ombros, eu podia comer em casa de toda forma.

Me arrumei o melhor que conseguia para parecer que não fui estragada por todos esses dias horríveis, mas eu não tinha trago maquiagem nenhuma e meus cabelos eram um nó eterno e dolorido. Eu não conseguia nem ajeitar eles com as mãos.

Tanto faz, essa era a aparência que sempre tive e minha mãe sabia disso até melhor que meu espelho.
Peguei minha chave e meu celular, ele provavelmente seria inútil por conta da pouca bateria, mas era melhor do que deixar ele. Nunca se sabe.

Meu estômago começou a se embrulhar assim que pisei pra fora daquela casinha apertada. Eu definitivamente odiava sair na rua.
Era uma caminhada um tanto longa até chegar no meu lar, até porque eu ficava mais próxima da floresta do que os meninos.
Mesmo que a floresta circulasse toda nossa cidade, a minha residência era quase como se o quintal fosse ela inteira.

Sentia um arrepio na espinha como se me dissesse pra eu voltar, mas pra uma pessoa ansiosa, esse arrepio sempre existiu.

Vamos, coragem.

Andei o mais rápido que conseguia enquanto minha mente formava uma bolha de pensamentos regressivos quanto a isso. Quer dizer, tinha alguma coisa acontecendo nessa casa. Não sei se era comigo, mas aquela casa era algo perigoso.
Um homem tinha entrado em baixo da minha cama, eu tinha presenciado um massacre.

A Laura não falava comigo tanto quanto no primeiro dia, e pra ser sincera não é como se ela estivesse sofrendo o mesmo que eu. Por algum motivo, toda a parada de maldição da carta de tarô resolveu cair só em cima de mim e agora eu estava indo sozinha pro lugar mais assustador que existia além da floresta.

Mas a minha mãe tá lá, e é só pra conversar e sair o mais rápido que der.

Foi isso que eu repeti na minha cabeça até girar aquela maçaneta com força, fazendo a palma da minha mão arder.

A casa estava vazia. Ninguém na cozinha, ninguém na sala. Apenas um ar pesado de que eu deveria sair correndo dali. Mas eu não era mais uma criança.

ㅡMãe?ㅡ Gritei e por um minuto, parecia até que a minha voz podia ecoar entre os cômodos, mas isso era só coisa da minha cabeçaㅡ Mãe, eu cheguei, onde você tá?

Comecei a me arrepiar e olhar mais para os detalhes.
A cozinha estava igual eu deixei, o bilhete continuava na geladeira.
O carro dela não estava lá fora, pelo menos eu não tinha visto nada.

Laila, o que aconteceria? Esta de dia, nada de ruim acontece de dia, certo?

ㅡQuerida, estou aquiㅡ Era a voz da minha mãe, meu coração até ardeu com o susto e o tempo que demorou.

E eu fui, andei até quase o lugar que tinha escutado que consistia em ser o meu quarto, o que me fez pensar o porque ela estaria lá, mas então como um estralo eu me toquei. Querida?

Minha mãe jamais me chamaria assim.

Meus olhos se arregalaram, meu óculos começou a escorrer com o suor do meu rosto e minhas mãos estavam geladas

Eu comecei a correr para sair da casa nesse momento. Alguém estava lá e não era a minha mãe.

Sem prestar atenção e descendo as escadas o mais rápido que eu conseguia, tomei um susto ao ver uma figura debruçada quase na porta principal.
Era um menino, e ele estava claramente ferido.
Na minha única tomada de decisão, passei correndo por ele e fiquei de frente pra porta enquanto forçava da forma errada a maçaneta para sair correndo

Droga, como ele entrou aqui? O que eu faço?

Eu não conseguia o enxergar, ele estava no canto escuro da sala, encostado perto da porta. Eu até poderia ligar a luz, mas eu sabia que o que estava no meu quarto com toda certeza iria atrás de mim.
Agora meu corpor olhava toda hora para o garoto, enquanto minhas mãos desordenadas forçavam a porta.
E honestamente, eu só queria sair, eu não queria nem ficar olhando pra trás mais, eu precisava correr.

Ele não vai te incomodarㅡ O garoto falou entre grunhidos o que me fez ficar em choque. Ele estava vivo pelo menos.

ㅡEle?ㅡ Eu estava evitando gritar enquanto segurava a maçaneta e olhava para as escadas. Se qualquer coisa ameaçasse descer aquilo eu ia correr e nem me importar com esse menino. Afinal de contas, por que caralhos ele estava ali? Quem era ele?

ㅡLaila, é tudo coisa na sua cabeça, não tem ninguém lá em cimaㅡEle continuava e dessa vez grunhiu um pouco mais alto. Droga eu preciso ajudar ele.

Soltei a porta e corri até ele, eu não era cruel o suficiente e ele precisava de ajuda. Talvez ele poderia me dar respostas, talvez eu fosse morrer por isso.

Laila?
Ele sabia meu nome?

Mas meu corpo se petrificou quando meus olhos se acostumaram com o escuro e seus traços ficaram aparentes.

Eu não podia acreditar.

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