cap (1) 1

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Partimos numa quinta-feira. A máquina sempre nos mantinha atualizados em matéria e datas. A passagem do tempo era importante: claro que não para nós, porra, mas
para ele... ela... para AM. Quinta-feira. Obrigado.
Nimdok e Gorrister carregaram Ellen durante certo tempo, fazendo cadeirinha com
as mãos e pulsos entrelaçados. Benny e eu íamos, respectivamente, na frente e atrás, para
garantir que, se acontecesse alguma coisa, só pegaria um de nós dois e Ellen, pelo menos,
sairia ilesa. Ilesa, imaginem. Como se fizesse diferença.
As cavernas de gelo ficavam a cerca de cento e cinqüenta quilômetros de distância
e, no segundo dia, quando estávamos descansando sob o sol causticante que AM tinha feito
despontar, começou a cair uma espécie de maná. Com gosto de mijo de porco fervido.
Comemos tudo.
No terceiro dia atravessamos um vale de coisas obsoletas, repleto de escombros
enferrujados de antigos centros de processamento de dados. AM era tão impiedoso com
sua própria vida quanto com a nossa. Eis aí uma característica da sua personalidade: lutar
pela perfeição. Quando se tratava de eliminar elementos improdutivos para o próprio
funcionamento, naquele mecanismo descomunal onde caberia o mundo, ou de aperfeiçoar
métodos de tortura, mostrava-se tão meticuloso quanto as pessoas que o tinham inventado
- e que há muito tinham se transformado em pó - poderiam jamais sonhar.
A luz começou a se filtrar lá do alto e percebemos que devíamos estar bem perto da
superfície. Mas não tentamos rastejar para ir verificar. Não havia praticamente nada ali fora
- fazia mais de um século que não existia nada que se pudesse considerar como alguma
coisa. Apenas o revestimento crestado do que outrora servira de morada para bilhões de
criaturas vivas. Agora os únicos sobreviventes éramos nós cinco, aqui dentro, no fundo,
sozinhos com AM.
Ouvi a voz de Ellen, frenética:
- Não, Benny! Pára com isso, por favor!
E então me dei conta de que já fazia vários minutos que Benny vinha murmurando
baixinho. Repetia, sem parar:
- Vou fugir, vou dar o fora daqui...
E retorcia a cara simiesca numa expressão simultânea de alegria e tristeza,
simplesmente beatífica. As cicatrizes da radiação causada por AM durante o "festival" se
misturavam aos esgares que lhe contraíam as feições esbranquiçadas - dir-se-ía que não
combinavam umas com as outras. Talvez fosse Benny o mais feliz de nós todos: há muitos
anos que vivia apalermado, feito doido varrido.
Mas mesmo que pudéssemos chamar AM de todos os palavrões que bem
entendêssemos, ter as idéias mais desfavoráveis sobre os centros de processamento de
dados queimados e as placas de base corroídas, dos circuitos interrompidos e lâmpadas de
controle quebradas, a máquina não tolerava a menor tentativa de fuga. Benny saltou longe
quando quis segurá-lo. Juntou um mostrador de cubo de memória, caído de lado e cheio de
componentes estragados. Ficou ali um instante agachado, lembrando o chimpanzé em que
AM pretendia transformá-lo.
De repente deu outro pulo mais alto, se agarrou a uma viga de metal esburacado e
enferrujado, e foi subindo por ela, palmo a palmo, feito bicho, até se empoleirar numa
trave saliente, a seis metros acima do chão.
- Ai, Ted, Nimdok, por favor, ajudem, peçam pra ele descer antes que...
Ellen não completou a frase. Os olhos se encheram de lágrimas. Fez um gesto
indefinido com as mãos.
Tarde demais. Nenhum de nós queria estar perto dele quando acontecesse,
fatalmente, o pior. Mas, além disso, sabíamos muito bem a causa da preocupação dela.
Quando AM resolveu modificar Benny, durante a fase completamente histérica e irracional
da máquina, não foi apenas a cara que o computador transformou em gigantesco gorila.

eu não tenho boca e preciso gritar Onde histórias criam vida. Descubra agora