cap (4)

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Avançamos lentamente. Às vezes alguém desmaiava e tínhamos que esperar. Um


dia resolvemos provocar um terremoto, ao mesmo tempo em que prendíamos a sola dos nossos sapatos com pregos para não sairmos daquele lugar. Ellen e Nimdok foram tragados e sumiram quando uma fenda rebentou com os parafusos das chapas do piso. Passado o terremoto, Benny, Gorrister e eu seguimos adiante. Depois, Ellen e Nimdok voltaram ao nosso convívio naquela mesma noite, transformada em dia claro pela legião de anjos que trouxe os dois em meio a um coro celestial que cantava "Go Down Moses". Os


serafins descreveram vários círculos antes de largar os corpos horrivelmente desfigurados. Continuamos a andar e pouco mais tarde Ellen e Nimdok começaram a seguir a gente. Ninguém diria que acabavam de sofrer tanto assim.
Só que Ellen agora, por obra de AM, tinha ficado manca.
Foi uma longa jornada até as cavernas de gelo, à cata de comida enlatada. Ellen não


parava mais de falar em cerejas Bing e coquetéis de frutas havaianas. Eu procurava não pensar nisso. A fome era uma coisa que tinha, tal como o próprio AM, que voltar a se manifestar. Estava bem viva no meu estômago, exatamente como nós, nas entranhas da Terra, e AM queria que notássemos a semelhança. Por isso aumentou a intensidade da sensação: impossível descrever as dores provocadas por meses a fio sem ter nada para Comer. E no entanto não morríamos. Estômagos que não passavam de meros caldeirões de ácido, borbulhando, espumando, sempre cravando punhais de dor aguda no peito. A dor da úlcera incurável, do câncer fatal, da irremediável paralisia. Infinita...

HE atravessamos a caverna dos ratos
A trilha da fumaça escaldante
O campo dos cegos
O lodaçal do desânimo
O vale das lágrimas

E chegamos, enfim, às cavernas de gelo. Milhares e milhares de quilômetros sem


horizonte em que o gelo se formara em clarões azuis e prateados, onde estrelas novas recorrentes cintilavam feito cristal. Os pingentes de estalactites, volumosos e deslumbrantes como diamantes, davam impressão de ter escorrido que nem gelatina, para depois se solidificar em belas eternidades de perfeição impecável e pungente.
Avistamos a pilha de víveres enlatados e tentamos correr até ela. Caímos na neve,


levantamos e continuamos, enquanto Benny empurrava todos para o lado, querendo chegar primeiro. Fez o que pôde para abri-Ias com as mãos, com os dentes, mas não conseguiu. AM não tinha deixado nenhum abridor com a gente.
Benny pegou unia lata de meio quilo de compota de goiaba e começou a batê-la


contra um banco de gelo, que se quebrou todo e estraçalhou, mas só conseguiu amassá-la, entre as gargalhadas da mulher gorda, que ressoavam e ecoavam pela tundra afora. Ficou completamente louco de raiva. Se pôs a jogar tudo longe, enquanto a gente se debatia no meio da neve e do gelo, procurando descobrir algum modo de terminar com aquela inútil agonia de frustração. Não encontramos nenhum.


eu não tenho boca e preciso gritar Onde histórias criam vida. Descubra agora