final

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De repente a boca de Benny começou a babar e ele se atirou em cima de Gorrister.


Nesse instante mantive uma calma terrível.
Rodeado pela loucura, pela fome, por tudo, menos a morte, vi que era a nossa única saída. AM queria nos deixar vivos, mas existia uma forma de derrotá-lo. Não uma derrota total, mas de obter a paz, pelo menos. Me contentaria com isso.
Tinha que ser rápido.
Benny já estava comendo o rosto de Gorrister. Esperneando na neve, caído de


lado, com as pernas simiescas de Benny esmagando-lhe a cintura, as mãos fechadas em torno da cabeça como se fossem um quebra-nozes, a boca rasgando-lhe a pele delicada da face. Gorrister gritava com violência tão dilacerante que os estalactites se partiam e tombavam suavemente, eretos, na neve amontoada pelo vento. Espadas, às centenas, por toda parte, sobressaíam na imensa vastidão branca. A cabeça de Benny saltou para trás abruptamente, enquanto algo por fim cedia, e um naco sangrento de carne crua e alva ficou pendendo dos dentes.
A fisionomia de Ellen, negra contra a neve alva, pedra de dominó no pó de giz.
Nimdok sem a menor expressão no rosto, apenas aqueles dois olhos enormes.
Gorrister semi-inconsciente. Benny agora transformado em animal. Eu sabia que


AM ia deixar que brincasse. Gorrister não morreria, mas Benny encheria a barriga. Me virei para a minha direita e tirei uma enorme espada do meio da neve.
Tudo numa fração de segundo:
Avancei com a grande ponta de gelo na frente, feito aríete, apoiada à coxa direita.


Feri Benny do mesmo lado, logo abaixo das costelas, puxando o cabo para cima, cortando-lhe o estômago e quebrando a ponta lá dentro. Dobrou-se em dois e caiu imóvel no chão. Aproveitando que Gorrister estava deitado de costas, arranquei outra espada, prendi-lhe o corpo - que ainda se mexia - entre as pernas, enterrando-a no fundo da garganta. Fechou os olhos ao ser penetrado pelo gelo. Ellen, embora paralisada pelo medo, deve ter-se dado conta do que eu tinha resolvido fazer. Correu para Nimdok com um pingente pequeno na mão e, enquanto ele gritava, enfiou-lhe na boca. A força do impulso concluiu o trabalho. A cabeça se pôs a retorcer de um lado para outro, como se estivesse pregada à crosta de neve na nuca.
Tudo num abrir e fechar de olhos.
Houve uma pausa interminável de silenciosa expectativa. Dava para ouvir AM respirando fundo. Tinham lhe tirado o brinquedo das mãos. Três já estavam mortos, não podiam ser reanimados. Era-lhe possível manter-nos vivos, com sua força e seu talento, mas não era Deus. Não conseguiria ressuscitá-los.
Ellen olhou para mim, as feições de ébano destacando-se na neve que nos rodeava.


Havia medo e súplica em seu jeito, na maneira como se mantinha pronta. Eu sabia que só dispúnhamos de uma batida do coração antes que AM nos interrompesse.
Golpeei-a com a espada. Dobrou-se em duas na minha direção, com a boca


sangrando. Não pude entender a expressão que tinha no rosto, a dor havia sido grande


demais, desfigurando-lhe o semblante; mas deve ter sido "obrigado". É possível. "Por favor.
Talvez tenham se passado centenas de anos. Não sei. AM vem se divertindo já há


algum tempo, acelerando e atrasando o meu sentido das horas. Vou dizer a palavra


"agora". Agora. Levei dez meses para dizer isso. Não sei. Acho que se passaram centenas de anos.
Ficou furioso. Não quis me deixar enterrá-los. Não fez diferença nenhuma. Não dava para abrir sepulturas nas chapas do piso. Secou toda a neve. Trouxe a noite. Rugiu e mandou gafanhotos. Não adiantou nada; continuaram mortos. Passei-lhe a perna. Ficou uma fera. Antes eu pensava que ele me odiasse. Estava enganado. Não era nem sombra do ódio que agora arrancava de cada circuito impresso. Tomou todas as precauções para que eu sofresse eternamente e não pudesse me matar.
Deixou o cérebro intato. Posso sonhar, divagar, me lamentar. Não me esqueci de


nenhum dos quatro. Quem me dera...
Ora, isso não tem nexo. Sei que salvei todos eles, não vão precisar passar pelo que passei, mas mesmo assim não consigo esquecer que liquidei com eles. O rosto de Ellen. Não é fácil. Às vezes sinto vontade, mas não interessa.
Acho que AM me modificou para ter um pouco de paz. Não quer que eu saia


correndo a toda velocidade para esmigalhar o crânio num centro de processamento de


dados. Ou prenda a respiração até desmaiar. Ou corte minha garganta numa folha de metal enferrujada. Existem superfícies refletoras aqui por baixo. Vou me descrever como me vejo:
Sou uma espécie de imensa gelatina flácida. Toda roliça, sem boca, com buracos brancos palpitantes, cheios de cerração, onde antes tinha olhos. Apêndices elásticos que antigamente serviam de braços; volumes arredondados, verdadeiras corcundas sem pernas, de matéria mole e escorregadia. Deixo um rastro úmido por onde passo. Manchas de um cinza doentio, assustador, surgem e somem na minha superfície, como se possuísse raios de

luz no meu interior.
Por fora: apatetado, me arrasto pelos cantos, um troço que jamais poderia ter sido gente, uma coisa cujo aspeto é uma aberração tão grotesca que a vaga semelhança com qualquer maneira humana se torna ainda mais obscena.
Por dentro: sozinho. Aqui. Vivendo debaixo da terra, no fundo do mar, nas


entranhas de AM, que nós criamos porque usávamos muito mal o tempo que tínhamos e decerto sabíamos, inconscientemente, que seria capaz de se sair melhor. Pelo menos os quatro estão salvos, afinal.

AM vai ficar ainda mais furioso por causa disso. O que me deixa mais contente. E


no entanto... AM venceu, simplesmente... tirou sua vingança...


Não tenho boca. E preciso gritar.

(Lembrando essa história não e de minha autoria só tive a iniciativa de traduzir e trazê-la para esse plataforma)

eu não tenho boca e preciso gritar Onde histórias criam vida. Descubra agora