cap (2) -1

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Quando vi, gritava de dor na articulação da mandíbula. Saí correndo de quatro, feito bicho, por aquele piso metálico, preso a uma série inacabável de rebites, sufocado pelo


fedor, a cabeça estalando de um sofrimento que me obrigava a fugir, horrorizado. Escapei


que nem barata, indo acabar lá fora, no escuro, com aquele troço avançando, inexorável, atrás


de mim. Os outros continuaram ali dentro, aglomerados ao redor da fogueira, dando


risadas.., um coro histérico de gargalhadas malucas que ecoava nas trevas feito fumaça de madeira, densa, multicor. Me afastei, o mais depressa possível, e me escondi.


Nunca me disseram quantas horas, dias, ou até anos, fiquei assim. Ellen ralhou


comigo por ter "emburrado" e Nimdok tentou me convencer que os risos não passaram de reflexo nervoso da parte deles.


Mas eu sabia que não era o alívio que o soldado sente quando as balas só acertam


em quem está a seu lado. Nem tampouco um reflexo. Eles me odiavam. Não havia dúvida


que me hostilizavam e AM podia inclusive saber desse ódio, agravando minha situação Justamente por causa da intensidade dessa repulsão. Ele nos mantinha vivos,


rejuvenescidos, permanecendo sempre com a mesma idade que tínhamos quando nos


trouxera ali para baixo; e os outros me odiavam porque eu era o mais moço e o menos


atingido pelas investidas de AM.


Eu sabia. E como, Santo Deus. Aqueles desgraçados e a víbora nojenta da Ellen.


Benny tinha sido um brilhante pensador, professor universitário; agora estava reduzido à condição intermediária entre homem e macaco. A beleza de outrora, destruída pela máquina. A lucidez de antes, transformada em loucura. Homossexual, o computador lhe


dera um membro digno de cavalo. AM havia caprichado no caso de Benny. Gorrister era


desses que se preocupam à toa. Pacifista, se recusou a lutar na guerra; participou de


marchas em prol da paz; não sabia ficar parado - empreendedor, se batia por causas


justas. Nas mãos de AM se tornou indiferente, uma espécie de morto-vivo, privado de


todos os sonhos. Nimdok passava longos períodos de tempo sozinho no escuro. Nunca


descobri o que costumava fazer lá por fora, AM jamais permitiu que soubéssemos. Mas,


seja lá o que fosse, sempre voltava pálido, exausto, abalado, trêmulo, atingido de alguma


forma especial pelo computador, muito embora não atinássemos com o que teria feito. E


Ellen. Aquela esponja de bidê! AM a deixara em paz, tornando-a mais devassa do que


jamais sonharia ser. Toda aquela conversa fiada de doçura e pureza, aquelas lembranças de


amor sincero, as mentiras que queria que acreditássemos: que só perdera a virgindade


pouco antes de cair nas garras de AM, que a trouxera para cá, junto com a gente. Pura


obscenidade, aqueles pretensos ares de recato, de honestidade, da minha Ellen. Imagina se


não ia adorar a situação: quatro homens exclusivos para ela. Não, AM lhe proporcionara


prazer, sim, mesmo que afirmasse que não era decente fazer aquilo.


Fui o único a conservar a lucidez e a integridade. Palavra!


AM não alterara meu cérebro. De jeito nenhum.


Apenas tinha que suportar os castigos que inventava para nós. Todas as ilusões.


pesadelos, tormentos. Mas aquela escória humana, meus quatro companheiros, se haviam


mancomunado para me combater. Se não precisasse mantê-los à distância, me


resguardando o tempo inteiro, talvez ficasse mais fácil lutar contra AM.


A essa altura a dor passou e comecei a chorar.


Ah, Jesus, meu bom Jesus, se algum dia exististe e se Deus também existe, por


favor, eu imploro, eu suplico, tira-nos daqui ou então extermina conosco de uma vez por por todas. Pois neste instante acho que compreendi por completo, a ponto de expressar em palavras: AM pretendia nos manter eternamente ali, no seu bojo, retorcendo e torturando a gente para sempre. Aquela máquina nos odiava como nenhuma criatura dotada de


sensibilidade jamais foi capaz de odiar alguém. E estávamos indefesos. Ficou, por fim, horrivelmente claro que:


Se o bom Jesus existia, e Deus também, então Ele só podia ser AM.

eu não tenho boca e preciso gritar Onde histórias criam vida. Descubra agora