Dividir a sua vida com alguém nunca é algo fácil. Você dá, voluntariamente, o seu coração a outra pessoa na esperança de que seja bem cuidado e, ao mesmo tempo, recebe o coração dela com um medo gigante de fazer nele um machucado sequer. Pelo menos comigo é assim. Tenho medo de causar feridas no coração que tenho nas mãos e de não saber lidar com as cicatrizes que não foram feitas por mim. Mas acho que, principalmente, tenho medo de perdê-lo.
Ter um coração nas mãos é uma responsabilidade enorme. Já dizia Antoine de Saint-Exupéry em O Pequeno Príncipe: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Afinal, no momento em que cativamos alguém, nós recebemos seu coração. Nu e cru. Vulnerável. Frágil. Recém saído do peito, ainda com um pouco de sangue. Batendo. Sim, batendo, porque este coração está vivíssimo, esta pessoa está vivíssima. A partir deste momento, seu coração bate fora de seu corpo. Não está mais envolto pelos pulmões e protegido pela caixa toráxica. Não há mais fluxo sanguíneo e uma série de tecidos e gordura para aquecê-lo. Não há mais nada físico o conectando ao seu dono. Mas, de forma surpreendente, esta pessoa "sem coração" se encontra mais viva do que nunca. E feliz. Que loucura é estar feliz por não ter mais um coração dentro de si.
Ter seu coração fora do peito é estar constantemente vulnerável. É ter medo de que ele seja machucado, esmagado e amassado. É ter medo de que ele não agrade. É ter medo de que ele seja devolvido.
Ter um coração em mãos é estar constantemente vigilante. É ter medo de causar um ferimento. É ter medo de reabrir uma cicatriz. É ter medo de não saber fazer uma sutura decente. É ter medo de esquecê-lo. É ter medo de deixá-lo cair por um descuido. É ter medo de que ele lhe seja tirado e não volte mais.
É ter medo.
Porém, mesmo assim, em meio a essa grande cirurgia que precisa ser feita, nessa troca de órgãos vitais, nesse estar sempre vulnerável e vigilante, há uma felicidade mútua e genuína em ver o próprio coração pulsando nas mãos da outra pessoa e, principalmente, em ter um que não é o seu nos braços. O que eu fiz de tão especial para recebê-lo? Como assim eu sou digna de ter uma preciosidade dessas? Deve haver alguma coisa errada, ser humano nenhum renunciaria a algo tão importante tão facilmente. E, ainda assim, cá estou eu fazendo a mesma coisa.
O ser humano, às vezes, é capaz de cometer loucuras e uma delas é viver nas mãos de outro ser humano igualmente louco. E nisso, há uma promessa silenciosa de cuidar desse presente com a própria vida ainda que sabendo que corre-se o risco de essa promessa ser quebrada a qualquer momento, porém sabendo, também, que ela pode ser refeita sempre que preciso. Não conheço outro nome para isso senão "amor".
Acho que uma das melhores palavras para definir o amor é "confiar". Confiar uma parte tão frágil, tão íntima, tão confusa, tão sua a outro indivíduo. Confiar que essa parte será tratada como o bem mais valioso do mundo. Confiar que as feridas que forem feitas serão suturadas com carinho. Confiar que, a partir de agora, a vida é construída a dois e não tem sentimento melhor do que esse. Ao mesmo tempo que você tem medo de tantas coisas, você vive na leveza que é a confiança. Acho que confiar é algo tão leve porque você deixa de carregar o peso do mundo sozinho, porque outra pessoa se ofereceu para te ajudar com essa carga. Porque essa mesma pessoa, que poderia continuar vivendo a própria vida sozinha, decidiu, em um lapso de insanidade, que não queria mais te ver sofrendo e se comprometeu a dividir contigo a dor que é a existência humana por toda a vida, para que nenhum dos dois a aguente só.
Várias vezes falei da loucura e seus sinônimos, mas que ato é mais insano do que o próprio amor? Quais pessoas seriam mais desvairadas do que o amante e seu amado? A ciência já verificou que o amor atua em nosso cérebro da mesma forma que uma droga em um viciado. Como não comparar o romântico incurável a um doido que não quer tratamento? Como não achar desprovido de suas faculdades mentais aquele que está sempre à procura de amar? Como não acreditar que se desprender de si mesmo é algo delirante? Sair de si para encontrar o outro é o ato mais louco que existe. Desbravar o total desconhecido é uma ação somente possível aos soldados mais valentes e talvez até mesmo suicidas. Da mesma forma chamo os corajosos que decidem sair da própria caverna escura para se aventurar nas terras nunca antes exploradas que é a pessoa amada. Valentes, sim, pois é necessária uma força incrível para deixar o que é conhecido e confortável e, enfim, dar um salto de fé, sem saber o que pode vir pela frente. Mas suicidas? Sim, suicidas, porque amar é morrer para si para viver uma nova vida compartilhada. E não, não estou esquecendo da individualidade que precisamos para sobreviver, só quero me utilizar da licensa poética para fazer metáforas hiperbólicas sobre sentimento tão belo e que merece todas as hipérboles. Já repeti a palavra loucura diversas vezes, mas somente loucos são capazes de nadar contra a corrente. Somente loucos são capazes das obras de arte mais aclamadas. Somente loucos são capazes de enfrentar as adversidades com a esperança de um final feliz. Somente loucos são capazes de dividir a própria vida. Somente loucos são capazes de entregar de bom grado o próprio coração. Somente loucos são capazes de escolher uma existência a dois. Há loucura melhor do que essa?
Dividir a sua vida com alguém não é algo fácil, mas se decidir por ser fiel, se decidir por amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na saúde e doença, na riqueza e na pobreza, por toda a vida é a maior loucura que eu desejo cometer.
Serei louca pra toda a vida.
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O lado Crônica da Vida
Cerita PendekUm livro recheado de crônicas sobre assuntos e reflexões da vida cotidiana. Leituras curtas para quem tem o tempo curto. Venha se identificar com essas histórias e se divertir bastante com elas.