I.| Azáfama matinal

73 7 30
                                    

D. Cristina, uma mulher a entrar na meia-idade, vivia uma azáfama naquele dia. As buzinas irritantes dos carros e os pára-arranca na longa fila interminável que culminava, precisamente, noutra fila ainda mais vagarosa. Havia veículos que, armados em chico-espertos, mudavam de faixa constantemente, com a intenção de averiguar qual era a menos lenta. Mas essa impaciência contínua, que se ilustrava na alteração obsessiva de estrada, só complicava ainda mais o trânsito. Buzina para aqui, buzina para acolá, e o pára-arranca. Pára porque o semáforo ficou vermelho, arranca. Pára porque o condutor da frente adormeceu e não viu a luz verde a aparecer, arranca. Pára porque o camião que está à frente avança a passo de caracol devido ao peso das mercadorias, arranca. E era nisto que os segundos, os minutos e as horas se passavam. Já não bastara a autoestrada (e o engraçado é que Portugal é dos poucos países que teve a ideia genial de cobrar a utilização de certas estradas...), já não bastara o engarrafamento que se formara no cruzamento para a Ponte Vasco da Gama, a ponte mais longa da Europa, com os seus doze quilómetros e tal, e agora era esta fila infinita na entrada da bela cidade de Lisboa, a famosa Calçada de Carriche que tinha um terço das vias em obras!

E, só por acaso, era sexta-feira, avizinhar do fim de semana, o que dificultava ainda mais aquele ajuntamento infernal de carros, carrinhas, motas, autocarros e camiões.

- Mãe, porque é que eu tenho de ir mais cedo para a escola hoje? Nem sequer vou ter aulas! - Resmungava Francisco, nos bancos de trás do carro.

- Porque eu e a tua irmã temos de ir buscar a menina do Erasmus ao aeroporto.

- E porque é que eu tenho de ir mais cedo? - Insistia o miúdo.

- Por este andar, acho que te safas. - Disse Matilde, falando pela primeira vez e mergulhando novamente na música que saía dos seus airpods brancos e preenchia os seus ouvidos.

Era uma vez as colunas de música JBL ruidosas na segunda metade dos anos 10. Penduradas ao pescoço dos mais jovens, não havia adolescente nenhum que não tivesse uma daquelas máquinas infernais, de onde saíam músicas eletrónicas e rap's a altos berros, em muitas ocasiões com os seus artistas a gritar palavrões eloquentemente. Os adultos chateavam-se com aqueles sons desafinados provenientes de paralelepípedos barulhentos, cada qual com a sua cor. Chegou a haver casos de escolas cujos funcionários, já fartos de tamanha falta de harmonia musical, apreendiam estes aparelhos. Era uma vez as colunas, e apareceram os auscultadores sem fios, silenciosos até demais.

Com a exceção de algumas resmunguices da D. Cristina, o veículo seguia em silêncio absoluto. Vendo que não captara a atenção que pretendia, o filho mais novo da mulher emergiu a sua cabeça nos vídeos do YouTube que passavam no ecrã do seu smartphone. A jovem, por seu lado, continuava distante, a contemplar a paisagem rodoviária que a circundava, enquanto ouvia músicas, ora mais eletrónicas e energéticas, ora mais paradas e melancólicas.

- Mas porque é que isto não anda? - Perguntou-se a si mesma a condutora, depois de passar uns bons dez minutos no mesmo sítio.

Na tentativa de encontrar uma explicação (e também de diminuir o ambiente pesado e silencioso que se vivia no interior do carro), ligou o rádio arcaico instalado no veículo. Dir-lhe-iam os filhos que, ali, só passavam melodias do tempo da Maria Cachucha, antiquíssimas e completamente fora de moda quando comparadas com os conjuntos de notas musicais e letras quase sempre em inglês.

- Vamos lá ver o que é que se passa com este trânsito, ou nunca mais é sábado.

- Regista-se trânsito muito lento nos acessos à Ponte 25 de Abril, assim como no acesso ao aeroporto Humberto Delgado... - Ia dizendo a interlocutora da rádio.

- Não me faltava mais nada! - Protestou a mulher. - Se aqui está assim, faço ideia o que há de ser para chegar ao aeroporto! Acho que a Emma vai ficar lá, sozinha e perdida.

Mais uns bons e longos minutos vagarosos e o carro continuava parado no mesmo sítio. Repentinamente, para espanto de todos, a bicha do tamanho do mundo iniciou uma marcha um tanto enérgica. Estava explicado: um pequeno grupo de jovens, que não chegava nem a meia-dúzia, envergava camisolas chamativas de cores berrantes e sacudia-se enquanto levantava uma faixa retangular comprida, com uns quantos escritos relacionados com o clima. Alguns populares a querer ir para o trabalho, furiosos, haviam saído das suas viaturas e arrastado as raparigas à força dali para fora. De facto, nos últimos tempos, era comum observarem-se cortes de estradas provocados por aquele tipo de protestos.

Uns quantos desvios e tentativas de escapulir ao trânsito e lá se conseguiu chegar até uma infraestrutura paralelepipédica, amuralhada por um gradeamento metálico a toda a volta, onde se penduravam uns quantos miúdos guinchadores sem o que fazer. Cristina, com pressa e sem ter um lugar para estacionar à vista, parou o veículo no meio da estrada e destrancou as portas.

- Vai lá ver se tens aulas, Francisco. - Instruiu o filho mais novo. - E vê se não te marcam falta! Porta-te bem!

- Até logo, mãe!

E lá foi o rapazito, de mochila às costas e cartão de identificação na mão, embrenhar-se na multidão de alunos atarantados, sem saber o que fazer, sem saber se iam para casa ou se ficavam.

(892 palavras)

Portugal, 2023Onde histórias criam vida. Descubra agora