A temperatura outonal finalmente começara a se fazer sentir, mas o bafejar da respiração não era impeditiva para os comerciantes que, corajosamente, haviam montado as suas bancas na rua e exposto os seus produtos. Muitos, em meados de novembro, já apresentavam as suas propostas para compras natalícias. Outros, preferiam mostrar os artigos com uma maior carga nacional.
Havia de tudo um pouco naquela feira. Moedas antigas e notas de escudo, anteriores à adesão de Portugal ao euro, mantas e xailes de crochet, malas e sacos de cortiça, livros amarelados de tão velhos que eram, antiguidades, vinhos, mel, compotas, bolos-secos, tremoços. Uma artesã, cujas mãos rodavam a agulha no pano quadrilé, de forma a uma imagem em ponto de cruz formar, conversava em animada codrilhice com a vizinha do lado, vendedora de panos de cozinha bordados, enquanto esperava por clientes.
Muita da clientela apenas passava por ali apenas para observar e admirar o artesanato. Era algo bonito de ver. As bancas todas organizadinhas, ainda que atoladas de coisas, os comerciantes que metiam conversa com qualquer um, as pessoas conhecidas que se iam encontrando pelos caminhos da tradicional feira.
Matilde permaneceu alguns instantes a contemplar um conjunto de conchas e estrelas-do-mar secas. Aquela era uma vila costeira, o que justificava a presença daqueles objetos ali. A par do material biogénico, havia pequenos barcos esculpidos em madeira, enfeitados com uma vela de pano e uma rede de pesca.
Emma ficou de volta dos galos-de-Barcelos. Apesar de a localidade visitada se situar a uma distância considerável do local da lenda, alguém rumara em direção ao litoral centro para mostrar um dos símbolos de Portugal. As estatuetas em barro e porcelana, daquele galo preto com bico amarelo, crista vermelha e decorações azuis, verdes e vermelhas, haviam captado a atenção da turista.
- Quer um galo-de-Barcelos, minha menina? - Perguntou a vendedora, simpática. - A lenda é muito antiga. Diz-se que em Barcelos, certa vez, um peregrino galego foi acusado injustamente. Inocente, afirmou que, se fosse verdade o que dizia, o galo assado da mesa do juiz levantar-se-ia e cantaria.
- E o que é que aconteceu? - Quis saber a luso-luxemburguesa.
- O galo cantou e o galego não foi enforcado.
Numa outra banca, vendiam-se moinhos brancos, com rebordos azuis, amarelos ou vermelhos, de todos os tamanhos. Cristina refletia sobre comprar um para enfeitar a cozinha.
Noutro canto da feira, decorria uma discussão quase filosófica entre Matilde, que já levava um saquinho cheio de conchas e pedrinhas, e Francisco.
- Para que é que tu queres esse livro velho? Não tens mais nada de interessante para fazer que não ler?
- Mas é O Memorial do Convento. - Contrapunha a rapariga.
- Livro chato. - Insistia Francisco.
- O seu autor, José Saramago, recebeu o Prémio Nobel da Literatura, um dos dois únicos prémios Nobel que Portugal já recebeu em toda a sua História.
- Não quero saber.
- Olha, eu vou levar na mesma. É um romance histórico, que conta a história do Convento de Mafra e daqueles que contribuíram para que esse monumento se erguesse: o povo.
- Compra o que quiseres. - Retorquiu secamente o miúdo, que estava mais que visto que leitura não era uma das suas atividades preferidas.
De repente, uma música mexida invadiu o ar. O som dos acordeões e dos cavaquinhos, completados por um coro de vozes alegres, preencheu os ouvidos dos presentes na feira.
Em trajes tradicionais, fatos para os homens e vestidos compridos com aventais com sei-lá quantos folhos para as mulheres, um grupo folclórico dançava e convidava os transeuntes a também se divertirem com aquela dança de roda e troca de pares. A música do rancho da aldeia fazia os visitantes do mercado tradicional mexerem-se, enquanto filmavam e tiravam fotografias.
Mais umas voltas pelas bancas, e Emma já tinha um punhado de postais para mostrar à sua família luxemburguesa e aos seus amigos, quando regressasse.
- Onde é que é isto? - Questionou a jovem, apontando para uma fotografia de uma ilha.
- Essas são as Berlengas. As mais pequenas, os Farilhões. Fica ao pé de Peniche, mas a viagem para lá não é fácil. É de meter medo ao susto. - Explicou a mãe dos dois irmãos. - Foi considerada reserva natural. Tem lá muitas gaivotas e mergulhões, e um farol.
- E esta floresta?
- Esse é o Parque Nacional da Peneda-Gerês. Um dos pulmões de Portugal, bastante verdejante quando não há incêndios. - Respondeu a adolescente portuguesa.
- E estes golfinhos? - Interrogou a outra miúda, enquanto ia vendo os postais que adquirira.
- São roazes do Sado. Vagueiam ao pé de Tróia.
- E este castelo em ruínas? Parece medieval.
Mas a conversa ficou a meio. Na feira, havia sido montado um palco, para o qual subira um conjunto musical qualquer que interpretava músicas de Rui Veloso.
- Não há estrelas no céu a dourar o meu caminho
A lamentação das nuvens que, por vezes, assombravam a juventude, impedindo que o Sol da Vida brilhasse! A adolescência e os seus problemas, espelhados naquela canção, chamavam os transeuntes para um espetáculo musical, repleto de músicas portuguesas.
- A primavera da vida é bonita de viver
Tão depressa o Sol brilha como a seguir está a chover
Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar
Parece que o mundo inteiro se uniu 'pra me tramar!
Assim prosseguia a melodia dos anos 90. Rui Veloso, marco na história da música portuguesa, aquele que ao Rock trouxe Chico Fininho, ali cantado naquela feira por onde turistas e curiosos vagueavam!
A cada música, a pequena banda recebia uma salva de palmas, um conjunto de sorrisos e de caras alegres. Pena que era a rádio, muitas das vezes, ignorar o rácio de canções portuguesas e estrangeiras, largamente em Inglês.
- E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo, impor-lhe uma fé
Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme
Ah, Homem do Leme, tema inconfundível dos Xutos e Pontapés cantado pela voz de Tim! Do mesmo homem-do-leme, cantava o poema do Adamastor, monstro horrível do Cabo das Tormentas que, depois de passado, Cabo da Boa Esperança ficou seu nome. O homem-do-leme que três vezes tremia, mas, de coragem se enchendo, o medo venceu e, representando o espírito coletivo de um povo, o gigante derrotou.
- Esta vida de marinheiro está a dar cabo de mim
Raparaparaparaparaparaparim
Que cantiga mexida e bem-disposta, que sempre ponha o público a cantar e a dançar! E que apropriada que era a banda sonora escolhida. Ao fundo, o mar de inverno, inquestionável e temeroso, exibia-se com as suas ondas de espuma branca, que espraiavam na areia dourada, salpicando quem os seus cães pela linha da costa passeava. Tenham medo de mim e respeitem as forças da Natureza, parecia ser o que dizia aquele oceano revolto, que nem no verão era de fiar! As correntes escondidas, os banhistas desavisados, as rochas escavadas de "água mole, em pedra dura, tanto bate até que fura". Bonito era de ver, aquele cenário, que tantos escritores inspirara. Já da sua perigosidade, nem se falava.
(1148 palavras)

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Portugal, 2023
Cerita Pendek🏅 Menção de Honra, Escritor Engajado, Leitor Engajado e Favorito dos Fãs 2 no Language Awards 2023, organizado pelo perfil oficial @WattpadContosLP 🏅 Selecionado para a lista de leitura "Ficção Geral" do perfil oficial @WattpadContosLP, a 02/2024 ...