IV.| Instalar-se

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- O que é que querem jantar? - Perguntou Cristina, cansada de todas as andanças do dia.

- Bacalhau com natas! Não, espera: prefiro antes arroz de pato. - Apressou-se a responder Francisco, saltitando de um lado para o outro pela casa. - Mãe, sabes onde é que está o meu jogo da PS?

- Deve estar no teu quarto. Pede ajuda à mana. Eu vou para a cozinha.

Não tardou a que o cheiro delicioso a natas saídas do forno invadisse toda a habitação. Ah, como era boa a comida portuguesa caseira! O bacalhau de todas as formas e mais algumas, o arroz-de-pato, o caldo verde, já para não falar nos doces, como o cremoso arroz-doce e o pão-de-ló fofinho!

A refeição decorreu em animada convivência. A luso-luxemburguesa, cujo pai fizera questão de lhe ensinar o básico de Português, estava espantada com toda a amabilidade e hospitalidade da família anfitriã. Até parecia que vivia ali desde sempre! A alegria transparecida, os risos, o ambiente amigável que se instalava naquela sala ao jantar. Ali, falava-se pelos cotovelos, sobre tudo e sobre nada. De facto, a companhia era muito privilegiada nos demorados almoços e jantares das famílias do país ibérico. Não havia espaço para a tristeza nem para a melancolia naqueles momentos de puro entusiasmo, que faziam a estrangeira sentir-se acolhida e acarinhada.

- São só vocês os três? - Perguntou Emma, tocando sem intenção num assunto complicado.

- O pai deles... - Começou Cristina, adquirindo uma expressão pesada. - Trabalhava numa fábrica por turnos lá para cascos de rolha. A estrada, cheia de buracos e curvas, não era das melhores. Ele vinha cansado, era uma noite chuvosa, a iluminação era pouca e o caminho perigoso. Bem, o Pedro teve um acidente e... Foi desta para melhor.

Matilde e Francisco sabiam que a mãe não gostava de falar sobre o marido falecido. A morte fora inesperada. Do nada, uma chamada do hospital. E do nada, o pai dos dois adolescentes, ainda crianças na altura, não voltou.

A visitante engoliu em seco. Fora uma pergunta inconivente. Esperava uma resposta do tipo "Já o vais conhecer daqui a um bocadinho". Sentia-se culpada por ter quebrado a boa energia da sala.

A adulta, para eliminar a nuvem sombria que se instalara sobre a mesa de comer, levantou-se e ligou o rádio, aparelho comum da sua geração, que tinha o dom de alegrar, com a sua música, qualquer situação.

- Ó gente da minha terra... - Cantava melancolicamente a artista na rádio.

Dentro de Emma, nasceu um sentimento proveniente da absorção da música. Aqueles conjuntos de notas perfeitos, que contribuíam de uma maneira divina para a expressão das emoções da cantora, conjugavam harmoniosamente com o cantar tristonho e sentimental da fadista. Que canção tão bela e tão infeliz, que sons melodiosos de tão lastimosos que eram! A turista nunca tinha ouvido nada semelhante.

- O que está a dar na rádio? - Quis saber a luso-luxemburguesa.

- Fado. - Informou Matilde secamente.

- Um género musical tradicional português. - Continuou Cristina, perante o ar intrigado da rapariga estrangeira. - Dizem que surgiu nos meados do século XIX, em Lisboa ou no Porto, é discutível. Na mitologia greco-romana, os Fados eram as divindades que controlavam o destino dos homens e dos deuses. O Fado nada mais é do que um lamentar da sujeição ao destino imutável que, às vezes, pode ser pesaroso. Havemos de ir a uma casa-de-fados um dia destes.

- Também podíamos ir ver a avó Rosário. - Sugeriu Francisco, entrando de rompante na conversa.

- Sim. Amanhã é sábado. Será um bom passeio e ela ficará feliz em vê-los. - Assentiu a mãe, refletindo sobre a sugestão do filho. - Bem, se amanhã querem ir visitar a vossa avó, têm que ir andando para a cama. A viagem ainda é longa.

- Anda, Emma, eu mostro-te o quarto dos hóspedes. - Voluntariou-se a rapariga anfitriã.

Entre levantar rapidamente a mesa e pôr a louça na máquina-de-lavar, Pantufa, o Podengo da família, um cãozinho de pelo farfalhudo da cor da areia, larapiou umas cascas de maçã que caíram no chão. Antes maçã do que fiambre ou salsichas! Não se estivesse com mil olhos no que estava na bancada da cozinha, e aquele pequenito esperto, engenhosamente, roubava qualquer coisa de aspeto apetitoso. Até cascas de batata iam à vida!

Menos ladrãozeco era Tareco, o gato listado amarelo que fora recolhido das ruas por Cristina em dia incerto vinda do trabalho. Era comum, nas zonas mais rurais, os bichanecos andarem livremente e fugirem de casa. Volta e meia, lá vinha uma ninhada. E aquele felino, de olhos verdes grandes, pedira à mulher que o levassem para casa. Teve a vontade satisfeita, ainda que pudesse vaguear pelos terrenos quando lhe apetecesse.

Emma ficou estupefacta quando lhe foi dado a conhecer o quarto onde dormiria durante a sua estadia em Portugal. A cama com a colcha cuidadosamente passada, o armário da roupa já com cabides e tudo, e uma grande janela que dava para o quintal onde Tareco costumava fazer as suas caminhadas crepusculares. Não pernoitaria num vão de escada nem num saco-de-cama num canto. A família cuidara de arranjar um quarto decente para a hóspede.

- Muito obrigada! - Agradeceu a turista.

- De nada! A minha mãe é que tratou dos teus "aposentos".

As duas jovens soltaram uma gargalhada sonora. Uma gostara da própria piada, a outra da anedota que ouvira. A boa disposição estava instalada!

- Acho que me esqueci da escova-de-dentes. - Lembrou-se de repente a luso-luxemburguesa, entre os risos que inundavam o quarto.

- Não te preocupes. Eu empresto-me uma. Há sempre uma a mais cá em casa.

- A sério? Obrigada!

Matilde abandonou a divisão, e dirigiu-se à casa-de-banho para procurar uma escova-de-dentes suplente. A hóspede deitou-se na cama, de barriga para cima, a contemplar o teto. Avizinhavam-se dias extraordinários!

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Portugal, 2023Onde histórias criam vida. Descubra agora