V.| Na aldeia

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O dia amanheceu com nevoeiro, algo habitual para a estação outonal em que o hemisfério norte estava mergulhado. Estranho tinha sido o clima de verão quente, a bater os trinta e muitos graus celsius, durante setembro e boa parte de outubro, em pleno Outono. O clima tinha-se tornado inconstante e incerto. Havia anos que o frio, a chuva e o granizo de Inverno se prolongavam pela Primavera. Naquele ano, 2023, o Verão veio em força durante a época da estação das árvores de folhas alaranjadas. Não interessava. Pelo menos não chuviscava. Estava um tempo propício a um passeio, tal como a família planeara.

Matilde, Emma e o irrequieto Francisco entraram no carro conduzido por Cristina. A mãe dos irmãos sabia bem o que levara o miúdo a pedir para visitar Maria do Rosário: a avó fornecia sempre lanches bem recheados de bolos caseiros. E o rapazito, guloso, via ali uma bela oportunidade de se empanturrar com doces sem que a mãe lhe ralhasse por causa do açúcar.

A paisagem bucólica do trajeto era bonita de se ver. Os terrenos agrícolas da Zona Oeste recheavam-se de vinhas verdejantes ao pé de pequenos cursos de água, como pântanos e paúis onde os caniçais reinavam. Não se podia deixar de falar nas pereiras, árvores essas que, mesmo não sendo do tamanho de sequóias, eram bastante produtivas. No Verão, carregavam nos seus ramos frágeis tantas peras que quase não aguentavam com o peso. Ai, a pera-rocha, sempre com aquele travo doce quando madura! O mesmo se dizia das maçãs de Alcobaça, peros vermelhos crocantes de paladar adocicado.

À tarde, nos terrenos baldios, os pastores levavam os seus rebanhos ovinos e caprinos, de guizos a tlintar, a pastarem. Com o rafeiro e o cajado, lá iam aqueles homens do campo, em busca dos campos mais verdes e das ervas mais frescas para os seus animais. Mas era de manhã. Não se viam pastores nem rebanhos. O orvalho matinal assentava nas pequenas herbáceas. Os pássaros esvoaçavam e chilreavam. Um bando de pardais saía das tabuas, um grupo de rolas cruzava os céus. Um peneireiro, expectante, esperava, poisado no poste, pelo seu pequeno-almoço. Os melros saltitavam à beira da estrada, conversando entre si. As garças brancas, nas proximidades dos corpos de água, ajeitavam-se para, à tardinha, pousarem nas costas das ovelhas e livrarem-nas dos parasitas.

Os sobreiros e as azinheiras, as poucas árvores autóctones que ainda restavam nos espaços florestais que não tinham sido invadidos pelos eucaliptos da indústria de papel, sacudiam-se levemente com a brisa. Via-se que a cortiça tinha sido removido na estação do calor, recuperando agora o sobreiro para fornecer mais desse produto tão português, tão na moda nos últimos tempos, com o qual se faziam malas, mochilas, bonés, bases para copos e até chapéus-de-chuva! E os carvalhos, com as suas folhas recortadas e as bolotas engraçadas. Aqui e ali, viam-se pinheiros mansos e bravos. Caídas no chão, estavam as suas pinhas que lembravam o Natal e os pinhões das broas do Pão-por-Deus. Os plátanos de tronco de casca esbranquiçada ladeavam o caminho que dava acesso à aldeia onde Rosário vivia. Pela janela do carro, inalava-se um cheiro a  ervas, um cheiro a árvores, um cheiro a ar puro, um cheiro a Natureza.

Antes de visitarem a avó dos irmãos, o grupo parou nas imediações de um pequeno café, cujo dono geria o monopólio dos negócios da aldeia. A mulher estava no minimercado, o único sítio onde se podia comprar alimentação e outros produtos de primeira necessidade na pequena localidade rural. A filha tinha uma loja de arranjos de costura que funcionava juntamente com uma papelaria. Só o outro café da esquina é que competia com aquela sociedade empresarial familiar por clientes, lutando por crianças que quisessem Epás, Pernas-de-Pau, Cornetos e Soleros e adultos que viessem tomar os seus cafés, galões, garotos e meias-de-leite.

A televisão estava ligada, a passar as notícias bombásticas da CMTV que prendiam os idosos a tarde toda ao ecrã. A um canto numa mesa, reunia-se um monte de jornais, onde um senhor de bengala, já com alguma idade, fora buscar os jornais desportivos A Bola e Record, na tentativa de se pôr a par com as novidades sobre os jogos do Benfica e do Sporting. Noutra mesa, um homem de meia idade lia o conteúdo sensacionalista do Correio da Manhã, com uma raspadinha, uma cerveja e um prato de tremoços à frente. A um canto, um trio de senhoras já de idade avançada, mas todas rabitezas, conversavam sobre as consultas médicas que tinham marcadas, mas já não iam ter, umas por causa da greve dos médicos, outras por o sistema estar em baixo (acontecimento interessante era esse: quando havia médicos, mas o sistema tinha-se ido, os utentes já não eram atendidos). Comentava-se também, noutro grupo, ao qual o proprietário do estabelecimento se juntara, a situação política do país. Com uma bomba, caíra a notícia de que António Costa, primeiro-ministro, se demitira em sequência de processos relacionados com negócios do lítio e do hidrogénio. Caindo o primeiro-ministro, caía também o governo de maioria absoluta, a meio do Orçamento de Estado. Há uns tempos, caíra por causa da não aprovação do Orçamento. Agora, caía por causa da demissão de uma das figuras de Estado mais importantes. Mesmo com as demissões sucessivas de ministros e secretários de estado, e dos "casos e casinhos", o Governo aguentara-se. Seguiam-se novas eleições e, enquanto as urnas não eram abertas, avizinhava-se uma época de extrema instabilidade, que elevava os corações daqueles comentadores políticos de café.

Cristina pediu para si uma meia-de-leite e um pastel de nata. Emma preferiu um café, enquanto Matilde se decidia entre um Compal ou um Sumol. Francisco optou por uma coca-cola e um saco de gomas, as quais ficara a escolher meticulosamente durante toda a pausa rápida naquele que era o estabelecimento comercial mais popular de toda a aldeia.

Descansado da viagem, o quarteto iniciou uma caminhada pelas vias pouco movimentadas, algumas até de terra batida. Depois de uma subida íngreme, lá estava a vivenda branca com contornos azuis da avó Rosário, com um belo jardim de sardinheiras e rosinhas-de-Santa-Teresinha cheirosas à frente. Assim que vislumbrou o grupo pela janela, a idosa, de cabelos brancos e cinzentos, veio ao seu encontro.

- Ó Cristina, não te julgava por aqui!

- Como está, Dona Rosário? - Cumprimentou a outra mulher, abraçando e dando dois beijinhos à senhora mais velha.

- E como estão os meus netos?

- Estamos bem. - Retorquiu Francisco. - Esta é a Emma. É a menina do Erasmus que veio do Luxemburgo.

- É verdade. A Emma vai passar os dias cá por Portugal. - Acrescentou Matilde.

- Entrem, entrem! - Convidou Maria do Rosário. - Não havemos de estar aqui a conversar no meio da rua.

A casa, de móveis de madeira antigos, estava imensamente decorada com estatuetas e quinquilharias. Nos armários da sala, havia fotografias e coleções de toda a espécie de pequenos objetos e porcelana: cãezinhos, gatinhos, figuras humanas e até chávenas e bules em miniatura. Em cima das mesas e superfícies lisas, naperons de renda trabalhada assentavam. Um gatinho, malhado de preto e amarelo, de rabo içado, saído de um cesto com lãs de tricot e crochet, ronronava e roçava-se nas pernas da dona da moradia. Um cheiro aconchegante a doce de abóbora vinha da cozinha.

Mas havia um vazio naquela casa. António, marido da Dona Rosário, fora levado pela recente pandemia. A Covid, doença essa do maldito vírus que parou o mundo, contabilizara nas suas vítimas o idoso que, até há uns quanto meses, habitava aquela moradia com a remexida avó. Época complicada. Do mais bem comportado da Europa, que se vangloriava em ser dos poucos que casos ainda não contava, enquanto as outras nações não tinham mãos a medir, Portugal passou a ser um dos países com mais casos e com mais mortos por milhão de habitantes. Todos os dias, as notícias anunciavam o flagelo que prometia exterminar os mais velhos. Longe se estava de haver uma vacina. Uma autêntica desgraça nos lares. As filas de ambulâncias formavam-se às portas dos hospitais sobrelotados, filas essas de esperas de muitas horas, às vezes dias. Montaram-se tendas, instalaram-se contentores pré-fabricados. Mas faltavam ventiladores. E eis que aconteceu o mesmo que sucedera na Itália: a complicada tarefa de escolher quem vive e quem morre. Médicos a decidir o destino de pobres almas de corpos moribundos, internados nos corredores, onde se acumulavam defuntos à espera de lugar numa câmara frigorífica.

As ruas tornaram-se desertas, os agitados centros citadinos converteram-se em cidades-fantasma. As escolas, mesmo após a garantia fincada do ministro de que os estabelecimentos de ensino nunca poderiam fechar, acontecesse o que acontecesse, receberam, de um dia para o outro, ordem para encerrar e passar para o regime online.

O álcool em gel, depois o álcool líquido e, mais tarde, a água oxigenada, tornaram-se bens raros, de valor incalculável, quase tão caros como os metais preciosos. Das máscaras, dizia-se o mesmo. Uma tossezinha de alguém, e todos se afastavam e escorraçavam o possível adoentado dali para fora. Andar aos "s", a desviar-se de tudo e de todos, de luvas, máscara a só deixar a descoberto os olhos e frasquinho de álcool na mão, tornara-se o novo normal. As pessoas isolaram-se, colaram arco-íris nas janelas. Conversava-se de uma varanda para a outra. As tecnologias viram a sua ascensão. A pandemia havia alterado a sociedade. As suas marcas eternamente se conservariam.

- Querem comer alguma coisa? Acabei de cozer uns bolos. Também tenho pão-de-ló e bolo de iogurte. - Disse a idosa viúva.

- Sim! - Respondeu alegremente Francisco, desatando aos pulos para a cozinha. - Estou cheio de fome!

- Como o puto é traquinas! - Sussurrou para si mesma Cristina.

Mas foi um dia bem passado. A visita deixara a idosa satisfeita. Cristina pusera conversa em dia. Os adolescentes divertiram-se a explorar a casa de várias divisões vazias. Era sempre bom regressar à ruralidade.

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Portugal, 2023Onde histórias criam vida. Descubra agora