VI.| No Restelo

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O Sol brilhava envergonhado através das nuvens. Mesmo assim, trazia a sua energia que aquecia as almas dos mortais na Terra.

Cristina, Emma, Matilde e Francisco desciam as ruas de calçada no elétrico lisboeta. Amarelo e branco, aquele fora o transporte predileto de muitos homens cultos dos inícios do século passado cujas fotografias apareciam nos livros de História e de Literatura. A título de exemplo, Cesário Verde, o poeta descritor do real, deve ter viajado umas quantas vezes no veículo alfacinha. Igualmente Fernando Pessoa o deve ter utilizado nas suas deslocações entre cafés e tertúlias. Pelo menos, o seu semi-heterónimo Bernardo Soares, o observador acidental, que deambulava pelas ruas da capital portuguesa, e o engenheiro Álvaro de Campos, cuja ode está censurada em todos os manuais escolares de Português para jovens a atingir a maioridade, o devem ter usado.

- Ai que saudade

Eu tenho de ter saudade

Saudades de ter alguém

Que aqui está e não existe

Sentir-me triste

Só por me sentir tão bem

Alegre sentir-me bem

Só por eu andar tão triste

Assim ia cantado paradoxalmente Ana Moura na rádio, no seu Desfado. Saudade, essa palavra tão portuguesa, cuja tradução é difícil de encontrar noutra língua. Saudade, esse sentimento do país ibérico que tantas vezes vira os seus filhos serem levados pelo mar. As varinas Nazarenhas que o dissessem. Vestidas de preto, de cestas de peixe à cabeça, não paravam para lamentar a morte dos maridos e da descendência masculina. As ondas impressionantes que tantos surfistas americanos e tantos turistas atraíam, a perigosidade do Atlântico, que não ousava que o desafiassem, a Natureza revolta, concentrava-se naquela porção de costa. As mulheres de Peniche, localidade piscatória, entretinham-se com as voltas da sua complicada renda-de-bilros.

O elétrico, onde o linguajar estrangeiro reinava, com conversas em Inglês a dominar a banda sonora, ainda que, uma vez por outra, se ouvisse uma palavra ou outra francesa ou espanhola, continuou a sua marcha calma pelas ruas lisboetas. Em pleno novembro, o cheiro a castanhas assadas quentinhas inundava o ar. E em junho, pela altura dos Santos Populares, as castanhas davam lugar às sardinhas, na cidade que se enfeitava com manjericos, faixas coloridas e alegres danças folclóricas de Santo António, o Santo Casamenteiro.

A calçada antiga de pedras cúbicas brancas e cinzentas formava desenhos e padrões com os quais Emma se maravilhava. Peixes, faixas, conjuntos geométricos, letras e tantas outras conjugações de cubos calcários formavam um tapete gasto e velho sobre o qual os transeuntes circulavam.

O quarteto desceu em frente a um desses conjuntos de pedras de calçada. A turista tentou ler as letras artisticamente desenhadas: Pastéis de Belém, 1837. Diante de si, disponha-se um edifício bem conservado de aspeto centenário e traços pombalinos. As varandas azuis em ferro forjado, os azulejos esverdeados e amarelados que formavam uma bonita geometria decorativa. No rés-de-chão, as portas de uma pastelaria de toldos azul-forte abriam-se para a clientela.

O olfato da rapariga captou um cheiro delicioso a pastéis acabadinhos de sair do forno. Foi recebida por um balcão do mesmo tom do toldo onde eram mostrados bolos frescos de aspeto fofo e saboroso, que provocam água na boca da luso-luxemburguesa. Nos armários, havia uma carrada de garrafas de vinho de todas as qualidades e de todas as castas. Os candeeiros do século passado, as mesas a combinar, as paredes forradas por azulejos azuis e brancos com figuras de animais e de flores.

O grupo foi recebido por uma funcionária de camisa e avental sorridente, que lhes indicou um lugar para apreciarem o doce de receita oculta. Vieram chávenas de café, ou bicas, como se chamavam por ali, a combinar com a cobertura da parede. Vieram também as identidades responsáveis pela sensação olfativa captada pelas narinas de Emma: os famosos pastéis-de-Belém, com a sua massa folhada crocante e estaladiça, que cobria o recheio de nata cremoso polvilhado com canela.

Portugal, 2023Onde histórias criam vida. Descubra agora