O entardecer não demorou a chegar. As ruas estreitas de calçada, ladeadas por edifícios históricos, eram percorridas a passo rápido pelo grupo que ia compondo a indumentária e os cabelos pelo caminho.
Diante de Cristina, Matilde, Francisco e Emma, uma porta aberta de madeira pesada, com um rebordo em pedra secular, protegia o letreiro negro onde se lia, em letras brancas desenhadas num estilo antigo, "Parreirinha de Alfama". Solenemente, o quarteto adentrou no espaço onde Amália, no passado, cantara a sua melancolia.
Foram recebidos por um ambiente formal. A pouca luz, que insistia em incidir no busto daquela que era sempre lembrada quando se falava em Fado, tornava o ambiente mais sóbrio. O revestimento das paredes por azulejos brancos com pinturas azuis continuava a ser presença assídua nos espaços históricos da cidade alfacinha.
Calmamente, a família e a turista acomodaram-se na mesa indicada pela empregada de trajes negros e imaculados folhos brancos. Enquanto os seus olhos ainda percorriam as letras da ementa, na mesa foram dispostos pratos com azeitonas, pacotinhos de manteiga e uma cesta com pão caseiro fatiado e broa de milho, seguindo-se uma tigela de caldo verde com uma rodela de chouriço por cima para cada um dos clientes.
Para o prato principal houve discussão. O miúdo, adorador de carne, protestou assim que a mãe pediu uma robalo grelhado. Como a larga maioria das crianças e dos adolescentes, recusava-se a consumir os tecidos de um ser marinho. Por isso, para Francisco, veio um bitoque com arroz, ovo estrelado, batatas fritas e salada. Completaram a mesa um prato com rojões de porco com ameijoas, uns camarões e uns pastéis de bacalhau.
O jantar estava saboroso. A ligação dos temperos e a qualidade dos alimentos, aliados à típica gastronomia portuguesa, tornavam aquela refeição bastante prazerosa, que mais sofisticada se tornou quando se começou a ouvir levemente o dedilhar melancólico das cordas da guitarra e o canto profundo e sentido de uma mulher, de corpo mais para o cheinho, com brincos dourados com a forma de corações-de-Viana e o tradicional xaile preto das fadistas.
- Numa casa portuguesa fica bem
Pão e vinho sobre a mesa
E se à porta humildemente bate alguém
Senta-se à mesa com a gente
A interpretação sentimental da artista fazia jus a quem cantara aquela canção em tempos idos do século passado. Letra que se materializara na voz de Amália Rodrigues, a Rainha do Fado que para o Panteão o seu corpo foi quando mais do seu canto ao vivo não se ouviu.
- A alegria da pobreza
Está nesta grande riqueza
De dar e ficar contente
O público, emocionado, deixava-se levar pela cadência triste do toque da guitarra e do cantar da senhora. Completamente vidrados na melodia, pelos cantos dos olhos de alguns dos clientes, iam escorrendo pequenas gotas, minúsculas, de água com cloreto de sódio, tão salgada como a matéria do Atlântico e do Mediterrâneo que banhava o país da saudade à beira-mar plantado.
- É uma casa portuguesa com certeza
É com certeza uma casa portuguesa
De lamentação, o fado cantado adquirira um tom mais alegre que fazia vibrar os espetadores. Refrão orelhudo que, com certeza, permaneceria nas memórias auditivas dos ouvintes durante bastante tempo. O ritmo mais exaltado e rápido, tão contrastante com o pesar e o sofrimento dos primeiros versos, fez com que a fadista, pela sua atuação singular, recebesse uma salva de palmas, a qual agradeceu com uma ligeira vénia.
- Um cravo numa água-furtada
Cheira bem, cheira a Lisboa
Uma rosa a florir na tapada
Cheira bem, cheira a Lisboa
Prosseguia a homenagem a Amália. De sinestesia olfativa, se fazia aquele fado. Fado de cheiros falados, de sensações verbalizadas, da Rainha que, certa vez, como a tantos outros artistas acontecera, uma das suas canções alterada teve pelo lápis azul, instrumento máximo da Censura que toda a produção artística vigiava, para que uma epidemia de ideias não tão adequadas aos olhos de alguém, não se propagasse pelo país de Salazar.
- Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi
Findadas as melodias da que um busto na casa-de-fados tinha, prosseguia-se para a geração mais nova de fadistas. Mariza, um dos rostos do renascer do Fado, tinha ali uma das suas composições interpretada com sentimentos exacerbados. O desalento, a angústia, emocionavam o grupo que se deliciava com leite-creme, baba-de-camelo, arroz-doce, serradura e mousse de chocolate enfeitada com línguas de gato, sobremesas doces e de textura leve, às quais se juntava um copo do doce e requintado vinho do Porto para Cristina, cujo saborear foi interrompido pela riqueza da música, ficando as taças de vidro meio cheias, meio vazias.
(752 palavras)
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Portugal, 2023
Short Story🏅 Menção de Honra, Escritor Engajado, Leitor Engajado e Favorito dos Fãs 2 no Language Awards 2023, organizado pelo perfil oficial @WattpadContosLP 🏅 Selecionado para a lista de leitura "Ficção Geral" do perfil oficial @WattpadContosLP, a 02/2024 ...