3 - Uma quase viajem sem volta ao mundo dos pesadelos

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Uma coisa ruim sobre dormir em uma Casa Transitória é não ter seu próprio espaço.

Eu dividia meu quarto com outros nove meninos. Agora, se você nunca entrou em um lugar fechado onde dez garotos suam, arrotam e fazem outras coisas nojentas que todo menino adora fazer, não tem como eu te explicar de outro jeito: é um chiqueiro.

Se você já teve a infelicidade de estar em um lugar assim, vai concordar comigo.

Minha cama ficava embaixo da janela. Essa era minha sorte, porque o ventinho que entrava mascarava o fedor dos meus companheiros de quarto.

Creio que você já deve ter adivinhado que eu não aceitei a proposta dos Sgarbis. Não tinha nada contra eles. Eram, na verdade, muito legais. Bem, pelo menos a Sra. Sgarbi era. O marido dela... bem, era tipo aqueles brinquedos que vem nos doces. Aceite uma mãe adotiva legal e ganhe um pai adotivo não tão legal. Ele não era ruim. Só tinha seu jeito de ser. Aquele ar de quem pode comprar tudo que quer sabe. No caso dele, eu tinha a impressão de que era verdade.

O que me fez recusar foi a Pereira. Ela queria muito que eu fosse com os Sgarbis. Ficou forçando a barra. E não curto isso.

Não era só isso, lógico. Tentar uma nova família adotiva com treze anos... não tinha dado certo antes, por que daria certo na sexta vez? Eles eram legais, e tudo mais. Mas sempre chega uma hora em que você olha nos olhos de seus pais adotivos e vê escrito ali: por que trouxemos ele para nossas vidas? Desse momento em diante as coisas pioravam. Os castigos ficavam mais rígidos. Se eu não apanhava, passava a apanhar. Me sentia excluído do resto da família.

Por fim, eu não esperava eles decidirem meu destino. Eu ligava para a Casa Transitória e falava para a Pereira que eu queria voltar. Era bem melhor do que a conversa que tiveram comigo nas duas primeiras vezes. Não foi só você, nós também temos culpa de não nos adaptarmos. E outras baboseiras do tipo. Quase duas horas de conversa só para dizerem que iam me devolver.

Nas duas primeiras vezes eu chorei. Implorei que seria melhor. Pedi mais uma chance. Não adiantou. Na terceira casa, quando eu tinha dez anos, decidi que não daria a ninguém mais o gostinho de me ver implorar. Nunca mais.

Somando isso ao fato de que a Pereira queria muito que os Sgarbis me adotassem, decidi ficar. Esperei a reação típica de orgulho ferido e nariz empinado dos dois casais anteriores. Reação essa que não veio. Os Sgarbis se olharam, quando eu recusei. O Sr. Sgarbi me tirou um cartão com seu nome.

- Se mudar de ideia, me chame. Viremos o mais rápido possível.

Fiquei com cara de , mas agradeci. Sai da sala antes que a Pereira me esganasse, algo que seus olhos prometiam fazer.

Naquela hora, deitado na cama enquanto roncos e puns quebravam o silêncio tranquilo da noite, eu pensava se tinha tomado a decisão certa.

Eu comecei a pescar. Deixei de lado o livro que estava lendo, O Mistério do Carneiro de Ouro. Nem folclore me faria ficar acordado por mais tempo.

Doce engano.

Mal fechei os olhos e já acordei. Meu coração martelava meu peito, embora eu não quisesse abrir os olhos para descobrir o motivo. Eu sabia que estava em minha cama, no meu quarto, na Casa Transitória. Mas a sensação era de que eu caía... caía, não. De que eu afundava cada vez mais.

Sei, soou ridículo até para mim. Como se afunda no seco? Mas só consigo descrever a sensação desse jeito.

Eu já tinha me afogado em uma piscina comunitária uma vez. Foi em uma colônia de férias, há uns três anos. O Tonhão (sim, já era mala faz tempo) me empurrou na piscina. E adivinhem. Eu não sei nadar. Se não fosse a salva-vidas, eu tinha passado dessa para melhor. Por isso eu sei qual a sensação de cair e não ter controle algum sobre o corpo.

A diferença era que eu podia respirar.

- Pobre menino - falou a Pereira no meu ouvido. O que, devo dizer, tornou tudo ainda mais assustador. - Sempre fugindo. Sempre com medo. Que pena, criança. Você podia ter sido feliz com a família Sgarbi.

Senti um hálito horrível, pior do que o do Tonhão. E isso é algo muito difícil de se conseguir. Meus braços começaram a tremer e fiquei todo arrepiado.

- Não tem problema, criança - falou a Pereira. - Se você não quer ir com eles, pode ficar aqui, comigo, para sempre.

Eu tinha a impressão de que ela não estava falando da Casa Transitória. Não sabia o que estava acontecendo, parecia que tinha enloquecido. Mas eu tinha a impressão de que não estava mais no meu quarto.

"Miguel, acorde", chamou uma voz bem fraca. Parecia vir de muito longe.

Eu tinha que sair dali. Ficar com a Pereira para sempre não estava na lista das dez coisas que eu queria fazer antes dos dezoito anos. Rolei ainda de olhos fechados e caí da cama. Me senti mais calmo. Não muito, mas tive coragem de abrir os olhos. O chão do quarto estava sob uma camada de névoa. Em alguns lugares do quarto, parecia que uma água lamacenta tinha invadido. Como... como se fosse um pântano.

"Vamos Miguel, levanta".

Senti o desespero da voz. Agora eu a ouvia com mais intensidade. Era a garota dos meus sonhos. Lembrar do rosto dela em cima do muro, os olhos verdes preocupados, me deu forças. Consegui ficar de joelhos. No mesmo instante, veio uma pressão nas minhas costas. Como se o pé de alguém me forçasse para baixo.

- Ah, criança. A guardiã não pode te ajudar. Ela não tem forças para se opor a mim.

"Isso é verdade", disse uma voz sarcástica que eu conhecia muito bem. "Mas isso não se aplica a mim, não é, Matinta?

A pressão em minhas costas hesitou.

- Você - Pereira disse, sua voz tomada pelo medo.

"Eu", disse, a voz dos meus sonhos. A que ficava no buraco negro da árvore dourada. Ela soou como se a voz e Pereira fossem amigos. "Agora, que tal deixar o garoto em paz?".

"Agora Miguel", disse a voz da garota, como se estivesse ao meu lado. "Acorde agora enquanto Matinta está distraida.

Com todas as forças que eu tinha, me imaginei acordando. Aquilo era um sonho. Um pesadelo dos piores. E eu precisava acordar. Se não acordasse, bem, não queria descobrir. Imaginei que me levantava e sentava na minha cama.

Abri os olhos. O quarto estava escuro. Apenas a luz da lua estava sobre minha cama. Os meninos ainda roncavam e soltavam pum. Mas não tinha névoa nem água pantanosa. Nem sinal de Pereira.

Um vislumbre de movimento me chamou a atenção. Olhei pela janela. A garota estava lá. Em cima do muro, em pé. Os mesmos olhos verdes me fitando, preocupados. Como um trouxa, acenei para ela. Ela quase ergueu o braço, mas se virou e pulou.

Peguei meu livro O Mistério do Carneiro de Ouro. Dentro dele estava o cartão do Sr. Sgarbi. Não tinha o Whatsapp dele ou alguma rede social. Apenas um cartão preto com o logo da Sgarbi's Ancestral Technologies (uma varinha mágica), e o nome dele do outro. Pensei em tudo que tinha acontecido naquele dia maluco. Fumaça saindo dos cabelos do Adriano; a garota dos meus sonhos aparecer na minha frente em carne, osso e presa; a pressão no meu cérebro na sala da diretora da Casa Transitória; e esse sonho estranho que pareceu mais real do que nunca.

Eu não queria ficar nem mais um minuto ali.

- Hey, sr. Sgarbi - sussurrei, tentando não parecer um louco (eu sei, tarde demais para isso). - Se estiver me ouvindo, eu... bem, eu gostaria de...

Como eu explicaria tudo aquilo? Não era do meu jeito voltar atrás com minha palavra, mas depois de tudo que aconteceu, confesso: estava apavorado.

- Se vocês ainda me quiserem, eu... me busquem, por favor.

O cartão piscou. Olhei para ele de sobrancelhas franzidas, mas não aconteceu outra vez.

Fiquei segurando ele, com medo de dormir. Mas acabei adormecendo. E, graças a Deus, sem pesadelos.

Pena que os pesadelos se tornaram reais muito em breve.

Miguel Oliveira e a Árvore de EldoradoOnde histórias criam vida. Descubra agora